Coturnos enlameados e páginas impactantes
Por que escrevemos
1o Sgt Leyton Summerlin, Exército dos EUA
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Em nossa sociedade, as pessoas esperam gratificação instantânea para os trabalhos mais simples. Assim é fácil perder de vista a importância da escrita, principalmente quando o ciclo de feedback para o autor raramente se fecha. Com pouco ou nenhum impacto ou gratificação imediata, por que alguém iria querer escrever? É desafiador, intimidante e pode nos fazer sentir vulneráveis. Além disso, por que um combatente de coturnos enlameados iria querer assumir tal tarefa?
A escrita é uma ferramenta poderosa para o autodesenvolvimento, incomparável em sua capacidade de trazer clareza aos nossos pensamentos e aprimorar nossas ideias. Ao colocarmos esses insights no papel, somos forçados a desenvolvê-los em sua totalidade, expondo pontos fracos em nossos argumentos que precisam ser reforçados e pontos de atrito que precisam ser esclarecidos. Quanto mais passamos pelo processo de escrever e refinar, mais aprimoramos nossa habilidade de comunicação concisa.
Mais importante do que o efeito da escrita sobre o autor é como ela transforma o leitor. Quando uma lição difícil é compartilhada, ela torna os leitores decisores melhores. Quando um insight é absorvido, ele molda a nossa visão de mundo e influencia nossas vidas de maneiras que nunca teríamos imaginado. Em 1987, o Chefe do Estado-Maior do Exército, Gen Carl E. Vuono, disse: “Compartilhar conhecimento e experiência é o maior legado que você pode deixar aos subordinados.”1
As histórias a seguir, contadas pelo Master Sgt. John BandyNT1 e o Ten Cel Jay Ireland, demonstram a importância de compartilhar nossas experiências e a conexão direta entre a leitura, a escrita e o combatente. Outras, como a minha, demonstram o impacto indireto e periférico que podemos ter quando compartilhamos nossas percepções, ideias ou experiências.
NT1: Graduação sem equivalente no Exército Brasileiro.
Palavras salvam vidas — Master Sgt. John Bandy
Conheci o Master Sgt. Bandy em 2023 enquanto servia no 2o Batalhão (Aeroterrestre), 503o Regimento de Infantaria da 173a Brigada Aeroterrestre. Sua vivacidade, experiência e acessibilidade decorrem do cuidado genuíno que tem com os soldados e do seu amor pelo Exército, o que leva os soldados a procurá-lo em busca de mentoria. Ele é mais conscientizado do que a maioria das pessoas sobre a importância de compartilhar lições.
Certo dia, no início de 2004, quando estava em serviço, tive de ler um artigo sobre a Operação Gothic Serpent, uma operação militar dos Estados Unidos da América (EUA) em Mogadíscio, na Somália. Algo nesse artigo chamou a atenção: 95% das baixas ocorreram nas ruas.
Avançando para novembro de 2004, eu estava em meio à Operação Phantom Fury [Fallujah, Iraque], o combate urbano mais extenso dos EUA desde a Guerra do Vietnã. Nada, e quero dizer nada mesmo, se compara ao caos de Fallujah. Em meio àquele caos todo, uma voz ficava ecoando na minha cabeça: fique longe das ruas.
“Os prédios ao meu redor desmoronavam e precisávamos continuar buscando abrigo nas ruínas para nos manter seguros.” Graças a esse artigo, minha equipe evitou ser atingida nas ruas. Em uma noite, ele salvou nossas vidas. Quando estávamos prestes a nos abrigar, tive um pressentimento ruim sobre a nossa posição. Disse a todos que entrassem em nossas viaturas e, assim que entramos, morteiros inimigos bombardearam o local onde estávamos. Fique longe das ruas.
Sou eternamente grato por ter lido esse artigo e não parei de ler desde então. Devo muito aos graduados que costumavam exigir que lêssemos conteúdos escritos internamente durante o serviço ou quando havia tempo livre. Aquele único conselho, encontrado em uma publicação empoeirada que fui obrigado a ler, salvou a minha equipe e a mim muitas vezes. Agradeço àqueles que dedicam seu tempo para compartilhar suas histórias e lições. Não são apenas palavras; elas salvam vidas.
Aprendendo mais rápido — Ten Cel Jay Ireland
Outra perspectiva vem do Ten Cel Ireland. Um líder apaixonado, cujo cuidado com os soldados é claramente visível em seu trabalho. Como Comandante do 1o Batalhão, 8o Regimento de Cavalaria, da 1a Divisão de Cavalaria, ele ficou mais recentemente conhecido por seu bem-sucedido programa de redação nas unidades.2
Fui comandante em combate, e isso moldou quem eu sou.
Estou sempre preocupado com a possibilidade de decepcionar a minha equipe ou ter de dar aquele temido telefonema para a família de alguém. Eu não desejaria isso a ninguém e, para evitar que isso aconteça, hoje sou continuamente motivado a compartilhar o que aprendi, seja para ajudar a salvar a vida de soldados ou para facilitar um pouco o trabalho de alguém.
Tudo começou em 2009, quando minha tropa estava prestes a ser desdobrada para as montanhas do Nuristão, no Afeganistão. Meu chefe fez com que os oficiais lessem a versão editada das investigações 15-6NT2 sobre o ataque ao posto avançado de Wanat. Estava toda marcada para ocultar certas informações, mas lemos cada palavra, procurando por qualquer coisa que nos ajudasse a manter nosso pessoal em segurança e um passo à frente do inimigo. Aquele ano foi intenso e repleto de atividades do Talibã. Sem dúvida, ler esse relatório ajudou a nos preparar para o inferno que enfrentamos. Aprendi o valor da leitura no contexto do combate e senti um alívio ao ver que todos nós levamos a sério aquela tarefa passada pelo meu comandante.
NT2: Investigações sobre determinados tipos de incidentes ocorridos no Exército dos EUA conforme previsto no AR 15-6.
Quando retornamos, eu quis compartilhar minhas experiências e ajudar futuros soldados. Escrevi sobre a defesa do nosso posto avançado de combate, misturando táticas e histórias pessoais. Quando achei que já estava pronto para enviar à revista profissional Armor, solicitei o feedback de outras pessoas, mas me disseram que o trabalho não estava pronto para publicação. Então, eu o engavetei e nunca mais olhei para ele. Em retrospectiva, sei que não estava perfeito, mas queria não ter desistido. Eu me arrependo de não ter usado o feedback como motivação para transformar aquele texto em um artigo profissional. Com isso, eu poderia ter compartilhado nossas lições, duramente aprendidas, e ajudado alguém a se manter um passo à frente.
Quero ser o primeiro a dizer que está tudo bem se a sua primeira tentativa não for perfeita. Escrever é um desafio, e agora que estou no comando de um batalhão, quero incentivar todos os militares a escrever e compartilhar suas experiências. Como um Exército, estamos nisso juntos, e eu ajudarei qualquer pessoa a preparar seu texto para que outros possam ler e, assim, conseguiremos todos continuar um passo à frente.
Impacto imprevisto — 1o Sgt Leyton Summerlin
De 2019 a 2023, fui sargento instrutor no Centro de Excelência de Manobra (Maneuver Center of Excellence, MCoE). Em 2020, eu e minha esposa descobrimos que ela estava grávida da nossa primeira filha, e me dei conta de que os soldados que eu estava treinando poderiam vir a ser comandantes dela, caso ela resolvesse se alistar no serviço militar, como muitos fizeram na nossa família. Essa ideia persistente me levou a trabalhar mais do que nunca, e eu me tornei o Sargento Instrutor do Ano do MCoE dois dias antes de ela nascer. Essa função é a de principal instrutor dos sargentos instrutores recém-designados, onde atualmente é o Fort Moore (Benning), na Geórgia. Eu acreditava que, se pudesse ajudar os sargentos instrutores, isso teria um impacto mais amplo e significativo nos futuros comandantes no Exército que, um dia, poderiam comandar a minha filha.
Nesse período, criei um curso de três dias sobre liderança com a participação de todos os novos sargentos instrutores. Essas aulas foram conduzidas por meio de discussões interativas e em grupo focadas em proporcionar aos participantes um senso de propósito profundamente enraizado, ferramentas práticas e a orientação de companheiros experientes. O problema é que eu usei somente um quadro branco e um marcador na aula. Não havia uma versão escrita.
Meus comandantes mais antigos me desafiaram a registrar a aula para que pudesse transmitir esses três anos de trabalho árduo aos instrutores que viriam depois de mim. Por mais que eu achasse que seria difícil ou detestasse a ideia de colocar esse curso no papel, sabia que eles tinham razão. Passei várias noites trancado em um quarto, após o trabalho, lutando contra meu bloqueio criativo até finalmente chegar ao produto final.
Por ter aprendido muito com as revistas profissionais do Exército, decidi contribuir com minhas ideias e publiquei “Standardizing Excellence” (“Padronizando a excelência”, em tradução livre) na revista profissional Infantry.3 Eu não tinha grandes expectativas para esse artigo. Queria apenas servir de inspiração para alguns jovens soldados pelos próximos 20 anos ou mais.
Por mais que eu achasse que seria difícil ou detestasse a ideia de colocar esse curso no papel, sabia que eles tinham razão. Passei várias noites trancado em um quarto, após o trabalho, lutando contra meu bloqueio criativo até finalmente chegar ao produto final.

Após três anos e duas mudanças de cargo, descobri que essa aula ainda está sendo ministrada e que o artigo que escrevi se tornou um componente essencial, influenciando positivamente muito mais soldados do que eu poderia imaginar. Sou grato por ter contado com os Sgts Garner, Gonzalez e Hapney como comandantes que me incentivaram e apoiaram a escrever e compartilhar minhas ideias e experiências com outros. Sempre incentivarei qualquer pessoa com boas intenções a fazer o mesmo.
Vozes que empoderam
Qual seria o momento certo para os militares começarem a compartilhar suas ideias e experiências nas publicações do Exército? A resposta é agora. Sejam 800 ou 4.000 palavras, seja um jovem praça ou um tenente-coronel experiente, todos têm ideias que podem beneficiar outras pessoas.
Embora a narrativa deste artigo ofereça motivos para escrever e seja um chamado para a escrita, é sempre fácil encontrar motivos para não o fazer, seja por falta de tempo, por ficarmos intimidados, por medo de represália, entre outros. Para os alistados, talvez seja por não terem habilidades para escrever ou acharem que ninguém valorizará suas ideias. Para um oficial, pode ser a pressão autoinduzida devido à possível percepção de incompetência por outros.
No entanto, se alguém afirmasse que o que você escreve hoje pode vir a salvar uma vida ou inspirar excelência em outras pessoas, e que isso, por sua vez, ajudará a vencer uma guerra futura que protege seus entes queridos, você escreveria? Como soldados, não hesitamos em enfrentar uma chuva de balas ou atravessar um possível campo de minas para nos aproximarmos do inimigo e destruí-lo ou para salvar um companheiro. Seja qual for o obstáculo que está impedindo você de pegar a caneta e compartilhar sua ideia ou experiência, supere-o. Talvez você não se dê conta ou nunca descubra, mas alguém está contando com você. Não escreva para você mesmo, escreva para eles.
Aqui estão algumas considerações finais sobre como começar, bem como abordagens para fortalecer a profissão das armas:
- Projeto final. Redija um texto refletindo sobre o fim de seu período em uma função específica. Seja você o comandante da Academia de Sargentos Instrutores no final do seu período na função ou um comandante de pelotão terminando um rodízio no Centro de Aprestamento Multinacional Conjunto (Joint Multinational Readiness Center), compartilhe o que aprendeu, no que falhou ou o que gostaria de ter feito diferente.
- Arma. Há algum desafio específico para uma determinada divisão, como a integração de sistemas de aeronaves remotamente pilotadas em um pelotão de fuzileiros de infantaria? Escreva dando a sua opinião sobre como isso pode ser corrigido.
- Institucional. Seria preciso mudar algo em nossos cursos de instrução militar principais? Se for o caso, inicie um diálogo entre a instituição e a força para solicitar um feedback claro e ponderado.
- Organizacional. Você acha que sua unidade poderia ser mais eficaz na guarnição e no treinamento? Comandantes, inspirem seus soldados a colocar suas ideias no papel e a, possivelmente, publicá-las em uma revista para beneficiar outras pessoas fora da organização.
Sou grato por ter contado com os Sgts. Maj Garner, Gonzalez e Hapney como comandantes e com uma esposa incrível, que me incentivou e apoiou a escrever e compartilhar minhas ideias e experiências com outras pessoas.
Referências
- “Year of the NCO Remarks at the Dedication of the New Academic Building United States Army Sergeants Majors Academy Fort Bliss, Texas”, 12 November 1987, folder 26, box 2, Carl E. Vuono Papers, United States Army Heritage and Education Center, Carlisle, PA, https://emu.usahec.org/alma/multimedia/610336/20184784MNBT989110502F024174I004.pdf.
- Jay Ireland e Ryan Van Wie, “How to Develop and Run a Unit Writing Program”, Military Review 104, no. SE-02 (2024): p. 76-81. Este artigo, incluído nesta edição [em inglês], apresenta um modelo de programa de redação nas unidades destinado a promover um discurso saudável e uma escrita profissional clara em nossas formações.
- Leyton M. Summerlin, “Standardizing Excellence”, Infantry (Summer 2023): p. 11, https://www.moore.army.mil/infantry/magazine/issues/2023/Summer/pdf/12_Summerlin_txt.pdf.
O 1o Sgt Leyton Summerlin é assistente especial do Chefe do Estado-Maior do Exército e Sargento de Pelotão na 173a Brigada Aeroterrestre. Summerlin também serviu na 2a Divisão de Infantaria, onde foi desdobrado para a Província de Zabul, no Afeganistão, com a 3a Brigada, no Centro de Prontidão Multinacional Conjunto com o 1o Batalhão, 4o Regimento de Infantaria (OPFOR) e como sargento instrutor no Centro de Excelência de Manobra (MCoE). Durante seu tempo no MCoE, Summerlin se tornou o Sargento Instrutor do Ano da MCoE em 2021 e ministrou aulas de liderança para a comunidade de sargentos instrutores.
“Continue trabalhando duro. Se sua principal aspiração é comandar (e deveria ser), lembre-se de que isso só pode ser alcançado com esforço e com prática constante. A ideia de que as Forças Armadas veem os escritores com desconfiança é completamente inválida. Todo Exército funciona bem principalmente por meio de uma redação clara.”
—S. L. A. Marshall, “Genesis to Revelation”, Military Review 52, no. 2 (February 1972): p. 24
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