Military Review

 

Isenção de responsabilidade: Em todas as suas publicações e produtos, a Military Review apresenta informações profissionais. Contudo, as opiniões neles expressas são dos autores e não refletem necessariamente as da Army University, do Departamento do Exército ou de qualquer outro órgão do governo dos EUA.


A Autoridade Civil em Manbij, Síria

Usando as Atividades de Assuntos Civis para Implementar os Esforços de Estabilização em Ambientes Não Permissivos

Ten Cel Peter S. Brau, Exército dos EUA

Baixar PDF Baixar PDF

Homem sírio empurra carrinho de mão através dos escombros na cidade de Manbij, no norte da Síria, em 14 Ago 2016, depois que as Forças Democráticas Sírias e as Forças de Operações Especiais dos EUA libertaram a cidade do controle do EI. (Foto de Delil Souleiman, Agence France-Presse)

Nota do autor: O artigo a seguir se baseia em experiências pessoais adquiridas na época em que servi na Divisão de Operações de Assuntos Civis (Civil Affairs Operations Division — CAOD), da Seção de Operações (J3) do Comando Central dos EUA, e em relatórios operacionais do período anterior até a libertação de Manbij, de julho de 2016 até a presente data. Nesse período, a CAOD era responsável pela elaboração de briefings para o Comandante do Comando Central e principais representantes nacionais da coalizão quanto ao desenvolvimento da governança civil no nordeste da Síria; pela coordenação de ajuda humanitária junto ao Departamento de Estado e à Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (United States Agency for International Development — USAID); e pelo trabalho junto à equipe de Assuntos Civis (Ass Civ) da Força-Tarefa Conjunta de Operações Especiais — Operação Inherent Resolve, encarregada de prestar assistência humanitária e mapear a dimensão civil no noroeste da Síria.

Antecedentes

“A prestação de segurança, manutenção da ordem pública básica e atendimento às necessidades imediatas da população” são tarefas centrais de estabilização do Departamento de Defesa, conforme definidas na Diretriz 3000.05, Estabilização (DODD 3000.05, Stabilization)1. Na maioria dos casos, essas atividades ocorrem em ambientes não permissivos durante e imediatamente após operações de combate. Devido à insegurança desses ambientes, o Departamento de Estado, responsável geral pelas atividades de estabilização, e a USAID, responsável por sua implementação, podem não ser capazes de conduzi-las no terreno. Nesses tipos de ambiente, caso receba a diretriz e a devida autoridade, o Departamento de Defesa pode assumir a liderança na implementação das atividades de estabilização até que seja viável transferir a responsabilidade principal de volta para outros departamentos e agências governamentais dos EUA. Contudo, para que isso funcione efetivamente, é preciso que haja um plano de estabilização comum, elaborado conjuntamente pelo Departamento de Estado, USAID e Departamento de Defesa. Além disso, quando praticável, o planejamento deve incluir parceiros regionais e da coalizão, forças aliadas e organizações não governamentais (ONGs). Nos casos em que o Departamento de Defesa tenha de liderar as atividades de estabilização, as equipes de Ass Civ são um excelente meio a empregar com o intuito de consolidar os ganhos militares e possibilitar a transição de volta para o controle civil.

Foi justamente isso o que aconteceu recentemente no nordeste da Síria, quando a Força-Tarefa Conjunta de Operações Especiais-Operação Inherent Resolve, auxiliada pelas Forças Democráticas Sírias (FDS), lutou para derrotar o Estado Islâmico (EI) e retomar as cidades sob seu controle. A libertação e subsequente estabilização de Manbij, na Síria, revelaram a existência de inúmeras lacunas entre as organizações envolvidas com as atividades de estabilização, oferecendo importantes lições sobre o esforço de planejamento necessário entre as autoridades civis locais, o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e a USAID em ambientes não permissivos, após operações de combate, e sobre as consequências da falta de um planejamento conjunto.

Libertação

Em agosto de 2016, as FDS — braço militar do Conselho Democrático Sírio — executaram, com o apoio de assessores de operações especiais dos EUA, ações para retomar o controle sobre partes da Província de Aleppo (especificamente, Manbij e adjacências). O EI havia ocupado e governado Manbij desde 2014, substituindo a liderança local, administrando os serviços essenciais e executando a limpeza étnica e religiosa em conformidade com sua crença. Conforme as FDS se aproximaram das fases finais de libertação da cidade, as equipes de Ass Civ das Forças de Operações Especiais (F Op Esp) do 96o Batalhão de Ass Civ (Aeroterrestre), que integravam o grupo de assessoria norte-americano, foram encarregadas de consolidar os ganhos operacionais em Manbij e seu entorno. Devido à possibilidade de haver células adormecidas do EI atuando nas proximidades e uma grande quantidade de artefatos explosivos improvisados (AEI) deixados para trás por militantes do grupo terrorista em toda a área, o ambiente foi considerado não permissivo, impedindo o Departamento de Estado e a USAID de enviarem pessoal para a cidade.

Em consequência do ambiente não permissivo, surgiu um número crescente de discrepâncias entre os relatórios produzidos pelos parceiros de implementação da USAID e as informações prestadas pelas equipes de Ass Civ das F Op Esp que estavam no terreno, em Manbij. De modo geral, os parceiros da USAID eram ONGs locais contratadas para prestar assistência humanitária imediata. Seus relatórios eram recebidos, em Ancara, na Turquia, pela Equipe de Transição de Assistência e Resposta na Síria (Syria Transition Assistance and Response Team — START), pertencente à agência de desenvolvimento. As ONGs não comunicaram nenhum problema dentro da cidade, embora não houvessem conseguido atuar em suas proximidades e fossem menos de cinco organizações em todo o Distrito de Manbij, na Província de Aleppo. Por outro lado, as equipes de Ass Civ das F Op Esp dentro da cidade observaram a falta de apoio médico, alimentos, eletricidade e água potável; os corpos em decomposição dos combatentes mortos do EI nas ruas; o número crescente de pessoas deslocadas internamente (PDI) nos arredores; e a quantidade cada vez maior de lixo por toda a cidade. Essa crescente discrepância levaria a uma pronunciada diferença entre a START e o Comando Central dos EUA (USCENTCOM) quanto às necessidades identificadas de apoio humanitário para os moradores da cidade durante os primeiros meses das operações norte-americanas na área de Manbij.

Formação do Conselho Civil

À medida que as operações de retomada do controle territorial avançaram, a população local se organizou e, com a assessoria e orientação das equipes de Ass Civ das F Op Esp, estabeleceu uma entidade de governança na forma do Conselho Civil de Manbij (MCC), denominado, posteriormente, Administração Civil Democrática de Manbij e entorno (veja a figura 1)2. O MCC foi criado com o apoio de anciãos tribais locais e das FDS, que libertaram a cidade e gozavam de forte apoio popular. O Comandante das FDS, Gen Mazloum Kobani, cuidou de comunicar, claramente, sua intenção de permitir que o MCC governasse a região livre da influência de suas forças, enquanto elas continuavam com sua ofensiva, visando a derrotar o EI no leste do Eufrates. A declaração de Kobani teve por objetivo aliviar as preocupações dos turcos quanto ao que estes percebiam como influência do Partido de União Democrática (Partiya Yekîtiya Demokr — PYD) e seu braço militar, as Unidades de Proteção do Povo (Yekineyen Parastina Gel — YPG), considerados terroristas por sua filiação ao Partido de Trabalhadores do Curdistão (Partiya Karkerên Kurdistanê — PKK).

Figura 1. Administração Civil Democrática de Manbij e Entorno, 12 Mar 2017. (Figura do autor)

O MCC foi formado nos mesmos moldes da estrutura de governo curda, comum no nordeste da Síria, com um homem e uma mulher como copresidentes (um árabe e o outro curdo), na liderança de até 13 comitês (também liderados por copresidentes de ambos os sexos), com vários subcomitês e níveis de filiação sob eles. Além disso, um dos preceitos dessa organização era o de garantir que todas a etnias estivessem representadas na mesma proporção de sua respectiva porcentagem na população, para estabelecer um órgão de governo verdadeiramente representativo. Apesar de não serem eleitos democraticamente, seus integrantes eram selecionados por meio do voto dos anciãos tribais, atuando em nome de suas respectivas tribos.

Embora fosse popular junto aos curdos e gozasse de forte apoio árabe na época, o MCC não era visto de modo favorável pela Turquia ou pela START (que estava em localização afastada, em Ancara, e sujeita, possivelmente, à influência advinda de sua associação com o governo da Turquia). Por sua vez, o regime sírio não apoiava o MCC, mas não estava em condições de agir ativamente contra ele devido à guerra civil em curso na maior parte do país e de sua luta pela sobrevivência contra o EI em outras áreas.

A criação do MCC ocorreu sem grande alarde em uma cidade desesperada pela volta à normalidade após anos de uma longa guerra civil e do controle do EI. Contudo, foi um acontecimento que gerou preocupações. Cabe observar a existência de interesses internacionais e étnicos conflitantes (do regime sírio, Rússia, Turquia, árabes, curdos, EI e EUA, para enumerar apenas alguns) e divergentes laços tribais (algumas tribos da área apoiavam fortemente o EI; outras eram totalmente contra a organização; e outras, ainda, tratavam a governança na região de uma forma bastante transacional, transferindo sua lealdade a quem fosse visto como mais forte no momento). Por isso, o MCC estava desesperado pelo apoio e patrocínio internacional. Os membros do MCC não recebiam nem recebem nenhum salário, ocupando funções de liderança como voluntários. Também não existe nenhuma verba para os serviços essenciais ou operações governamentais quando da publicação deste artigo, embora tenha surgido um certo nível de tributação para ajudar a gerar subsídios para serviços básicos e combustível. Como o MCC não é reconhecido pela comunidade internacional, não pode haver nenhum financiamento oficial de suas operações (ou de qualquer conselho civil no nordeste da Síria) por parte das Nações Unidas ou outros órgãos dirigentes internacionais. Em vez disso, o MCC depende das verbas fornecidas por doadores — cuja maior parte é restrita em escopo em relação a como as doações podem ser utilizadas ou que projetos podem ser financiados (em lugar de pagar salários ou como parte do orçamento para pagar pela reconstrução da infraestrutura de serviços essenciais).

Interesses Conflitantes: O Início da Fase Final

É importante entender parte da dinâmica subjacente na região, que influenciou fortemente as posturas iniciais contra e a favor do MCC, pois esses pontos de discórdia persistem entre a Turquia, os curdos, os EUA e o regime sírio.

O último conselho civil que governou Manbij antes da entrada do EI fugiu para a Turquia quando a organização terrorista se apossou do controle da cidade. Passou a ser conhecido como Conselho de Azaz, com base na cidade de Azaz, na Síria, de onde alguns de seus integrantes atuavam, enquanto os demais fugiram para a Turquia. Composto quase totalmente de árabes, o Conselho de Azaz teve um relacionamento duradouro com a START, da USAID, e a comunidade internacional antes da libertação de Manbij, devido a seus fortes vínculos com a Turquia e à facilidade com que podia se comunicar com a START.

Integrantes das Forças Democráticas Sírias em 12 Ago 2016 em Manbij, na Síria, logo após um combate ferrenho para libertar a cidade do controle do EI. (Captura de tela de vídeo cedida por Voice of America)
Manbij, na Síria, fica perto da fronteira com a Turquia e de Aleppo e Raqqa, as duas principais cidades no norte da Síria que os jihadistas do EI utilizaram para controlar o território que haviam tomado, em uma tentativa de estabelecer o Estado Islâmico do Iraque e da Síria. (Mapa cedido pela BBC)

A USAID, principal agência federal dos EUA para a ajuda humanitária (e potencial reconstrução comunitária), criou a START como uma plataforma para promover os objetivos da política externa norte-americana com respeito ao norte da Síria. A liderança da START iniciou um esforço significativo para reempossar o Conselho de Azaz, já que, do ponto de vista da equipe e devido aos fortes vínculos do conselho na Turquia, essa entidade era o legítimo órgão dirigente de Manbij. Contudo, a má reputação do Conselho de Azaz entre a população, sua inatividade em relação a contribuições da comunidade internacional e seus fortes laços com a Turquia levaram à relutância do povo de Manbij a se reconciliar com o Conselho de Azaz. De modo geral, a população de Manbij acreditava que o Conselho e a liderança de Azaz eram compostos de políticos corruptos e ladrões, devido, em grande medida, à percepção comum de que eles haviam fugido da cidade com quantias consideráveis do dinheiro público. Alguns residentes continuam a exigir um julgamento para tratar dessa violação da confiança do público. O MCC organizado localmente com integrantes residentes na área alegou não ter nenhum tipo de comunicação ou vínculo com os membros do Conselho de Azaz, embora os tenha incentivado a retornar a Manbij e a assumir papéis na reconstrução da cidade, ao mesmo tempo que criou a expectativa de que aqueles que voltassem não receberiam funções de liderança até que se reintegrassem e demonstrassem sua capacidade para os habitantes locais.

A Demanda por Ajuda Humanitária

Uma lacuna na entrega de ajuda humanitária e o lento retorno de serviços essenciais para os moradores da cidade ficaram em evidência logo após a libertação de Manbij. Essa lacuna na ajuda humanitária acabou durando mais de três meses e se tornou um ponto de discórdia entre a START e o USCENTCOM, criando, ainda, o risco de um iminente desastre humanitário. As ONGs contratadas localmente para prover ajuda aos moradores de Manbij comunicavam aos seus homólogos na START que a ajuda estava sendo entregue; contudo, onde e para quem eram algo questionável. As equipes de Ass Civ na cidade informaram que não havia nenhuma ONG em atuação dentro do perímetro urbano, observando durante semanas a situação humanitária continuar a se deteriorar. Por fim, a situação chegou a um ponto crítico quando o Gen Joseph Votel, Comandante do USCENTCOM, aprovou o envio de ajuda humanitária sem a concordância da USAID. Foi somente quando o Enviado Especial da Presidência Brent McGurk visitou a cidade pessoalmente, viu a crise e determinou que a START/USAID “corrigisse isso imediatamente” que a START (1) começou a aceitar os relatórios das equipes de Ass Civ como verdadeiros e (2) estabeleceu a START-FWD como um elemento avançado para atuar no nordeste da Síria, a fim de ter uma melhor ideia de qual era a verdade no terreno.

O líder do Comitê de Serviços Sociais da Administração Civil Democrática de Manbij aborda planos para lidar com o retorno de residentes deslocados durante a ocupação do EI, em reunião realizada em Manbij, na Síria, 09 Ago 2018. As pessoas começaram a voltar para Manbij depois que as Forças Democráticas Sírias expulsaram o EI, em 2016. (Foto da Sgt Nicole Paese, Exército dos EUA)

Um dos comitês do MCC formou um grupo voluntário que ficou conhecido como Organização de Manbij para a Assistência e o Desenvolvimento (Manbij Organization for Relief and Development — MORD). Após a libertação de Manbij, a MORD assumiu a principal responsabilidade pela implementação do programa de Ajuda Humanitária, de Desastre e Cívica no Exterior (Overseas Humanitarian, Disaster, and Civic Aid — OHDACA), no valor de US$ 1,5 milhão, criado pelas equipes de Ass Civ das F Op Esp que atuavam na cidade.

A MORD era composta de jovens ativistas oriundos de universidades em Aleppo e Raqqa, motivados a fortalecer sua cidade natal por meio de uma sociedade civil autônoma, que mostrou ser uma eficaz parceira de implementação. Antes de qualquer distribuição de assistência à população local, a MORD coordenava com outras agências de ajuda, para prevenir a duplicidade de esforços; com o MCC; e com entidades encarregadas da segurança. Isso criava as condições para que a organização pudesse, unilateralmente, retirar e transportar cargas úteis de ajuda de um depósito utilizado pelo programa OHDACA e, subsequentemente, distribuí-las à população de Manbij e outros locais. Essa distribuição quase imediata de assistência humanitária após a libertação de Manbij (antes que as ONGs estivessem aptas a atuar) foi vital para atender às necessidades humanas básicas e suprir deficiências em serviços essenciais, o que foi crucial para alcançar a vitória e estabelecer as condições para impedir o ressurgimento do EI.

Até mesmo com o auxílio da MORD na coordenação e colaboração com as ONGs, havia uma tensão constante entre ela e as ONGS que atuavam fora de seu modelo. Em muitos casos, estas últimas estavam fornecendo os mesmos itens essenciais que as ONGs que atuavam junto à MORD, mas por serem entidades claramente separadas, passaram a ter uma influência que afetava a legitimidade do recém-formado MCC. Uma das lições aprendidas logo no início foi o fato de que a MORD não podia obrigar as ONGs a trabalhar com ela — toda ONG tinha sua própria missão, restrições e operações. Ao contrário, a MORD tinha de interagir e estabelecer aqueles relacionamentos primeiro e, então, tentar coordenar para prevenir a duplicidade de esforços.

O MCC em Comparação a Outros Conselhos Civis

À medida que as FDS continuaram seu avanço contra o EI e libertaram outras cidades no nordeste da Síria, foram criados, rapidamente, outros conselhos civis a partir do mesmo modelo do MCC (veja a figura 2). Esses novos conselhos civis foram recebidos com o mesmo tipo de euforia, por representarem esperança e liberdade do jugo do EI. Entretanto, como a organização dos conselhos civis seguia o modelo curdo, quanto mais as FDS avançavam para o sudeste, maior a probabilidade de resistência a eles, conforme se passava de uma minoria para uma maioria árabe — embora, na prática, os árabes ocupassem um número igual ou maior de cargos de liderança no modelo inclusivo de governança curdo.

Figura 2. Áreas de Influência do Conselho Civil Avaliadas em Janeiro de 2018. (Figura cedida pelo Serviço de Análise de Terreno Humano, Força-Tarefa Conjunta de Operações Especiais-Operação Inherent Resolve (SOJTF-OIR J9), a pedido do autor)

Conselho Civil de Raqqa. Quando as FDS atravessaram o Eufrates e começaram a se aproximar de Raqqa, algumas das lições aprendidas em Manbij foram aplicadas. Reconheceu-se a lacuna em ajuda que ficou evidente após a libertação de Manbij, e o setor de Ass Civ forneceu verbas adicionais do programa OHDACA. Foram identificados os principais pontos de infraestrutura que precisariam de reconstrução ou restauração imediata. As ONGs atuantes na região armazenaram recursos de assistência humanitária na forma de alimentos, produtos de higiene e itens não perecíveis (ex.: cobertores, aquecedores e combustível). Além disso, foram planejados vários acampamentos de PDI para o número previsto de civis fugindo da cidade. A START estava intimamente envolvida e preocupada em evitar uma repetição da lacuna na prestação de ajuda humanitária que se seguiu à libertação de Manbij.

À semelhança do MCC, o Conselho Civil de Raqqa (RCC) se desenvolveu a partir de pressões internas para identificar líderes civis que haviam ficado na cidade durante a guerra civil e subsequente ocupação do EI. Os organizadores do RCC se recusaram a sequer considerar que os antigos líderes civis que haviam fugido para a Turquia tivessem a oportunidade de assumir os cargos de liderança que eles haviam ocupado anteriormente. A postura do RCC era a de receber de volta qualquer antigo morador da cidade e incorporá-lo como voluntário em um dos comitês. Só depois que o indivíduo houvesse demonstrado seu valor é que ele poderia começar a se empenhar em recuperar um cargo de liderança.

O maior obstáculo enfrentado pelo RCC seria a mudança de Ein Issa (norte de Raqqa), onde ele se encontrava antes da libertação da cidade, para a própria Raqqa, após a expulsão dos combatentes do EI. O grau de devastação foi muito além do ocorrido em Manbij ou Tabqah (cidade localizada 55 km a oeste de Raqqa), aproximando-se dos níveis apocalípticos vistos na parte oeste de Mossul, com a destruição de bairros inteiros. Até hoje, há apenas alguns bairros com água corrente, mas sem eletricidade, e com um mínimo de serviços médicos, fora das áreas menos danificadas da cidade. Embora as escolas já tenham sido reabertas, muitas não recebem um nível adequado de serviços, não têm água corrente para os alunos e só atendem a crianças na faixa de idade do 1o ao 5o ano. As crianças na faixa de idade do 6o ano em diante estão sem escola em quase toda a cidade. A euforia inicial provocada pela libertação da cidade já diminuiu, e muitos moradores se sentem cada vez mais ressentidos com um conselho civil que não tem sido capaz de efetuar melhorias mais rápidas e amplas (embora se possa dizer que, sem o financiamento internacional, qualquer conselho consideraria o trabalho de reconstrução um desafio insuperável).

Homens efetuam reparos em uma estrada nos arredores de Manbij, Síria, 11 Jul 2018. Os esforços de reconstrução e manutenção são um sinal da segurança e estabilidade que retornaram à região desde que as Forças Democráticas Sírias a libertaram do EI. (Foto do 2o Sgt Timothy R. Koster, Exército dos EUA)

Outros conselhos civis regionais. Formaram-se conselhos civis nesses mesmos moldes por todo o nordeste da Síria, em Tabqah, Shaddadi, Deir Ezzor e outras aldeias. De modo geral, esses conselhos civis ainda têm o apoio da população local, mas os moradores estão cada vez mais frustrados com o lento retorno à normalidade na prestação de serviços essenciais, já que a comunidade internacional se recusa a oferecer qualquer assistência que possa beneficiar o regime de Assad no longo prazo. Em consequência, a maior parte das melhorias representam soluções temporárias para problemas sistêmicos, que só poderão ser resolvidos com uma quantia considerável em verbas para reconstrução.

Entendendo o Problema Óbvio, mas Ignorado: Uma Oportunidade Perdida?

Transcorridos dois anos, o conselho civil em Manbij se desenvolveu, e a cidade converteu-se em um ímã para pessoas deslocadas em busca de uma área estabilizada. Os serviços essenciais estão disponíveis. Existem serviços de saúde. Os mercados estão prosperando. A normalidade voltou — mas talvez por pouco tempo.

Após a Operação Euphrates Shield, em que a Turquia protegeu sua área fronteiriça a oeste de Manbij e leste de Afrin, e a subsequente tomada de Afrin durante a Operação Olive Branch, os conselhos civis apoiados pelos turcos foram compostos, na maior parte, por refugiados que haviam ocupado cargos anteriormente, mas fugiram do EI, e que a Turquia avaliou como sendo favoráveis e não parte do PKK/PYD/YPG. Esses conselhos civis apoiados pela Turquia substituíram os existentes, embora os residentes fossem fortemente contra eles, por considerarem seus novos integrantes ilegítimos e não representativos do povo que havia ficado para trás, sob o domínio do EI.

Um jovem e uma menina visitam um mercado em Manbij, Síria, 12 Jul 2018. Residentes de Manbij e adjacências têm a liberdade de visitar mercados e lojas sem a ameaça do EI desde a retomada da cidade. (Foto do 2o Sgt Timothy R. Koster, Exército dos EUA)

Quando o Presidente Donald Trump anunciou a retirada das forças norte-americanas da Síria em dezembro de 2018, o futuro dos conselhos civis e a estabilidade por eles gerada foram postos em risco. As forças turcas se concentraram na fronteira, determinadas a criar uma zona-tampão livre de terroristas do PKK (a Turquia enxerga o PKK, PYD e FDS como diferentes versões da mesma organização). As FDS estão à busca de um parceiro confiável para substituir os EUA e seus aliados da coalizão como um contrapeso à Turquia — e um acordo com os russos e com o regime de Assad está ficando mais realista. Isso relembra o que aconteceu quando as forças turcas se aproximaram de Manbij durante a Operação Euphrates Shield e os EUA se viram diante de uma situação potencialmente tensa com seu aliado da OTAN. O MCC passou mais de cinco aldeias para o controle do regime de Assad, com o intuito de criar uma zona-tampão entre as forças turcas que se aproximavam e Manbij; e o governo sírio e os russos conseguiram intervir e fazer frente aos turcos e às forças da oposição síria aprovadas pelos turcos.

Larry Bartlett, assessor sênior da Equipe de Transição de Assistência e Resposta na Síria, e o Embaixador William V. Roebuck se reuniram com integrantes da Administração Civil Democrática de Manbij para discutir a segurança e estabilidade da cidade no 2o aniversário de sua libertação do jugo do EI, em Manbij, na Síria, 09 Ago 2018. O grupo abordou temas como educação, assuntos civis e a mídia. (Foto da 3o Sgt Izabella Sullivan, Força Aérea dos EUA)

É bem possível que, se as FDS e as forças norte-americanas houvessem sido capazes de prever o contínuo antagonismo do governo turco em relação a esses novos conselhos civis, elas teriam aconselhado o MCC, desde o início, a incluir maior representação do Conselho de Azaz, ou ajudado a orientar o comitê de relações exteriores na formulação de um plano de comunicação estratégica para aplacar as preocupações turcas. Isso talvez teria tranquilizado os turcos e prevenido a ocorrência de operações turcas ao longo de sua fronteira. Independentemente disso, a inclusão de integrantes do Conselho de Azaz teria sido uma pílula difícil de engolir para os residentes que ficaram para trás e que não queriam que indivíduos que eles consideravam traidores ou corruptos recuperassem cargos de autoridade.

Em retrospecto, considerando que a política norte-americana indicava que suas forças permaneceriam até que se chegasse a um acordo de paz, foi a decisão certa na época. Contudo, sabendo a que ponto a situação chegou atualmente, talvez existam outras ações que pudessem ter sido tomadas. Compreender os costumes e redes locais é fundamental para o setor de Ass Civ, mas prestar contínua atenção ao ambiente estratégico e potenciais problemas com países fronteiriços é igualmente importante.

Considerações Finais

Shervan Derwish, portavoz del Consejo Militar de Manbij, da una conferencia de prensa sobre las operaciones para liberar Manbij el 4 de junio de 2016. (Foto: Cahîda Dêrsim, @dersi4m a través de Twitter)

Shervan Derwish, porta-voz do Conselho Militar de Manbij, fala das operações para libertar Manbij do controle do EI, 04 Jun 2016 (Foto cedida por Cahîda Dêrsim, @dersi4m via Twitter)

Apesar da escassez de recursos e mínimo apoio internacional, o MCC demonstrou sua capacidade para restaurar a normalidade em Manbij, distanciando a cidade e seus residentes da era do controle do EI. Os limitados recursos disponíveis eram consumidos com uma rapidez ainda maior do que o normal devido ao fato de Manbij servir como exemplo de estabilidade em toda a região, fazendo com que as PDI buscassem refúgio na cidade. A amplamente divulgada governança inclusiva, segurança e administração de serviços básicos pelo MCC atraíram entre 400 e 500 PDI diariamente, conforme elas escapavam de outras áreas ocupadas pelo EI, aumentando a população de PDI para mais de 60 mil na cidade e arredores.

A chave para alcançar a estabilidade em áreas afetadas por conflitos é conduzir um planejamento adequado logo no início junto aos nossos parceiros do Departamento do Estado e USAID com respeito às atividades de estabilização não apenas durante a fase IV, estabilização, mas em todas as fases de operações militares3. Quando o ambiente operacional impedir a presença do Departamento do Estado e da USAID, o Departamento de Defesa deve estar preparado para intervir e liderar a execução desses planos. A estabilização de Manbij após sua libertação demonstrou a importância de empregar equipes de Ass Civ das F Op Esp para trabalhar junto e por meio da população local. O emprego de unidades de Ass Civ treinadas para direcionar, de maneira adequada, a assistência humanitária e a programação de governança, como no caso de Manbij, possibilitou observações locais em tempo real sobre a dimensão humana, o que apoiou a organização do governo civil interino, permitindo-lhe desenvolver-se e resistir durante seu período mais vulnerável, imediatamente após a cidade ser retomada do controle do EI. O exemplo de Manbij também demonstrou que a boa governança terá uma probabilidade bem maior de sucesso com o apoio a entidades locais que sejam inclusivas, em lugar de tentar obrigar os residentes locais a aceitarem o que eles veem como uma entidade externa e corrupta (como no caso do Conselho de Azaz).

Contudo, esse exemplo também indica a necessidade de melhor planejamento entre o Departamento de Estado, USAID e Departamento de Defesa. A inexistência de um plano, o ceticismo interagências em relação aos relatórios de Ass Civ e a necessidade de convencer nossos parceiros interagências e a comunidade internacional a apoiarem o MCC existente ocasionaram o desperdício de um tempo valioso. Se a START e seus parceiros de implementação houvessem dado apoio prontamente ao MCC, a transição para a normalidade e estabilidade após a libertação em toda a região (além da cidade de Manbij) teria sido mais rápida. Contudo, as lições de Manbij foram usadas para criar um modelo para o êxito na estabilização em áreas não permissivas em Tabqah após a remoção do EI e para a estabilização de Raqqa após sua libertação pela Coalizão Sírio-Árabe, com o apoio das FDS.

Por fim, é importante entender a dinâmica local, mas permanecer ciente das questões estratégicas regionais que possam surgir em países vizinhos. Embora executar a melhor opção no momento seja sempre algo desejável, deve-se sempre manter o objetivo final em mente quando se almeja a estabilização de longo prazo de uma região. A postura dos EUA quanto à Síria foi sempre a de prevenir a fragmentação do país (o que significa que qualquer conselho civil que fosse estabelecido teria de fazer as pazes com o regime), e a categorização do PYD — e das FDS (ou uma grande parcela) — como uma organização terrorista pela Turquia teria importantes implicações. Afinal, os EUA estão no Afeganistão há 17 anos e no Iraque por quase tanto tempo, combatendo pelas mesmas razões que a Turquia pretende criar sua zona-tampão: pela segurança de seus cidadãos contra redes terroristas dentro e do outro lado de suas fronteiras. Os EUA se recusaram a reconhecer as mudanças de nome realizadas pela Frente Al-Nusrah, quando os terroristas na Síria repudiaram seus vínculos com a organização anterior. Não deveria ter sido tão difícil entender por que a Turquia se recusaria a fazer o mesmo em relação ao PYD/YPG e às FDS quando essas organizações repudiaram seus vínculos com o PKK e anunciaram que só estava conduzindo operações na Síria e não tinham nenhuma intenção hostil para com a Turquia4.

Em 16 Jan 2018, quatro norte-americanos, incluindo dois militares, um funcionário civil do Departamento de Defesa e um prestador de serviços foram mortos em um ataque suicida em Manbij. O EI assumiu responsabilidade pelo ataque. Embora o Presidente Trump e o Vice-Presidente Pence tenham declarado vitória sobre o EI na Síria — uma vitória simbólica sobre o califado físico — o grupo terrorista continua a representar uma ameaça considerável e ativa na região.


Referências

  1. Department of Defense Directive 3000.05, Stabilization (Washington, DC: U.S. Government Publishing Office [GPO], 13 Dec. 2018), p. 4.
  2. A figura 1 se baseia em informações constantes de “Manbij Democratic Civilian Administration Council Takes Office”, ANF News, 12 Mar. 2017, acesso em 22 jan. 2019, https://anfenglish.com/news/manbij-democratic-civilian-administration-council-takes-office-18957, e em relatórios das equipes de Ass Civ das F Op Esp no terreno à época.
  3. Field Manual 3-0, Operations (Washington, DC: U.S. GPO, Oct. 2017), 1-12. As operações conjuntas são divididas em seis fases: Fase 0 (Moldar), Fase I (Dissuadir), Fase II (Obter a iniciativa), Fase III (Dominar), Fase IV (Estabilizar) e Fase V (Capacitar a autoridade civil).
  4. Office of the Spokesperson Media Note, “Amendments to the Terrorist Designations of al-Nusrah Front”, U.S. Department of State, 31 May 2018, acesso em 22 jan. 2019, https://www.state.gov/r/pa/prs/ps/2018/05/282880.htm.

O Ten Cel Peter Brau, do Exército dos EUA, é o Chefe do Setor, Região Central do Golfo e Irã, na Divisão de Sincronização de Comunicações, Diretoria de Planos (J5), USCENTCOM. Entre julho de 2016 e julho de 2018, serviu como oficial de integração de informações civis na Civil Affairs Operations Division (CAOD), CCJ3, USCENTCOM. Durante seu período na CAOD, foi encarregado de criar uma ferramenta de avaliação para sincronizar a visão do governo como um todo entre todos os componentes interagências, comandos unificados e Forças Singulares quanto aos conselhos civis no nordeste da Síria, em resposta direta às perspectivas desconexas que afetavam a assistência fornecida em Manbij. O Ten Cel Brau possui mais de 20 anos de serviço, incluindo o serviço no componente da ativa, Guarda Nacional e componente da reserva, nas áreas de artilharia de campanha, inteligência militar, material bélico, logística e assuntos civis.

Voltar ao início

Primeiro Trimestre 2020