A revolução iminente da IA nas Forças Armadas
Cel Joshua Glonek, Exército dos EUA
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O fato é que vemos tudo o que o inimigo está fazendo e eles veem tudo o que estamos fazendo. Para resolver esse impasse, precisamos de algo novo, como a pólvora que os chineses inventaram e que ainda usamos para matar uns aos outros.
—Gen Valery Zaluzhny, ex-Comandante em Chefe das Forças Armadas ucranianas
A superioridade tecnológica de longa data das Forças Armadas dos Estados Unidos da América (EUA) está se enfraquecendo rapidamente.1 Nos últimos 25 anos, a China investiu fortemente em suas Forças Armadas — o Exército de Libertação Popular (ELP) — colocando-as no rumo para “concluir a modernização militar e da defesa nacional até 2035” e transformar o ELP em “Forças Armadas de classe mundial até meados do século”.2 O aumento do poder de combate chinês representa hoje um desafio enorme para a ordem internacional liderada pelos EUA e para a segurança de seus aliados e parceiros.3
Uma tecnologia em particular determinará a primazia das forças militares nas próximas décadas: a inteligência artificial (IA). Com o advento dos carros autônomos e do ChatGPT, a IA ultrapassou o domínio da ficção científica e começa agora a proliferar em toda a sociedade. Essa tecnologia revolucionária também está criando novas oportunidades para as forças militares. As aplicações de emprego dual da IA disponibilizam ferramentas para a análise rápida de grandes quantidades de dados, o aprimoramento da conexão entre sensores e atiradores e o aumento da velocidade de tomada de decisão. As Forças Armadas dos EUA devem abraçar essa tecnologia transformadora e acelerar o desenvolvimento de aplicações inovadoras de IA para preservar sua vantagem tecnológica, dissuadir a agressão adversária e, se necessário, prevalecer em conflitos armados.
A revolução iminente da IA nas Forças Armadas enquadra-se precisamente na competição geopolítica mais ampla entre os EUA e a China. Há muito em jogo nessa competição e o resultado é incerto. A China acredita que os EUA são uma superpotência em declínio. À medida que o poder de combate do ELP cresce, suas ações tornam-se mais agressivas. Nos últimos dois anos, os EUA registraram mais de 180 casos de interceptações aéreas perigosas do ELP contra aliados e parceiros dos EUA.4 O Mar do Sul da China continua sendo um foco de hostilidade controverso, com a China fazendo reivindicações territoriais ilegítimas e continuando a sinalizar sua disposição de usar força militar contra Taiwan.5 As tensões são altas, e o risco de conflito é real.
Obter êxito nessa competição entre grandes potências — e dissuadir a guerra — exigirá que as Forças Armadas estadunidenses preservem suas vantagens tecnológicas. No entanto, alcançar isso exige um esforço exemplar de inovação, já que a China está se aproximando com rapidez. Determinado a “inteligencializar” a guerra, o ELP está rapidamente buscando uma geração inteiramente nova de sistemas militares habilitados por IA.6 Em apoio a esse esforço, o Partido Comunista Chinês está mobilizando uma quantidade significativa de recursos públicos e privados. Os avanços continuam a acelerar.
Em resposta, o Departamento de Defesa dos EUA embarcou em seu próprio caminho de modernização militar. Acelerar a adoção da IA é agora uma grande prioridade para o Departamento de Defesa, que busca aproveitar o poder de inovação do setor privado estadunidense, que abriga as principais empresas de IA do mundo. Ao implementar sistemas habilitados por IA em larga escala e empregá-los no campo de batalha de novas formas, as Forças Armadas dos EUA pretendem compensar o progresso do ELP e manter sua posição de superpotência inigualável no mundo.
As consequências da revolução iminente da IA nas Forças Armadas são enormes. Se desenvolvida de forma eficaz, a IA permeará todos os sistemas e processos militares. Enormes ganhos de eficiência serão obtidos à medida que a IA reduz as demandas de processamento de dados sobre os seres humanos, evitando a sobrecarga cognitiva e possibilitando análises mais rigorosas. A consciência situacional crescerá, as operações se tornarão mais precisas e as decisões serão mais bem fundamentadas. A velocidade da guerra aumentará. Aqueles com as melhores ferramentas de IA estarão constantemente explorando a iniciativa, enquanto os demais terão dificuldades para entender o que está acontecendo.
À medida que a revolução da IA nas Forças Armadas avança, todos os membros da profissão devem se preparar. Do general ao soldado, todos teremos um papel a desempenhar na transformação que ocorrerá nos próximos anos na força. Temos de abraçar o novo e nos adaptar às mudanças no ambiente. Como afirmou certa vez Giulio Douhet, teórico italiano do poder aéreo, “a vitória sorri aos que preveem a mudança no caráter da guerra, não aos que esperam para se adaptar depois que as mudanças ocorrem”.7 As palavras de Douhet, escritas há mais de um século, ainda repercutem fortemente hoje.
Uma breve história da IA
Embora a IA possa parecer um fenômeno relativamente novo, o matemático britânico Alan Turing desenvolveu a teoria pela primeira vez em 1950. Tendo desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento dos computadores, Turing acreditava que a IA seria alcançada quando as máquinas se tornassem capazes de responder a perguntas de forma indistinta das respostas humanas.8 Nas duas décadas seguintes, a pesquisa em IA prosperou à medida que a Agência de Projetos Avançados de Pesquisa de Defesa (Defense Advanced Research Projects Agency) financiou a criação de laboratórios de IA em várias universidades importantes.9 Apesar dessa enxurrada inicial de pesquisas sobre IA, a falta de poder computacional e armazenamento de dados dos computadores primitivos levou muitos a acreditar que os avanços sucessivos não eram mais viáveis. Por isso, o financiamento foi reduzido significativamente para a maioria das pesquisas de IA.
O desenvolvimento da IA passou por um ressurgimento na década de 1980, quando microprocessadores avançados disponibilizaram maior poder computacional. Em linha com um conceito conhecido como “Lei de Moore”, a capacidade dos chips de computador continuou a crescer exponencialmente, dobrando a cada dois anos aproximadamente.10 Esses semicondutores mais poderosos permitiram que os cientistas da computação acessassem bancos de dados maiores, habilitando algoritmos mais sofisticados. Uma nova série de programas conhecidos como “sistemas especialistas” foi desenvolvida, a qual, pela primeira vez, foi capaz de reproduzir a tomada de decisão dos seres humanos.11 Os sistemas especialistas reuniam vastos conhecimentos e dados sobre um tópico específico. Esses programas conseguiam resolver problemas estritamente definidos que, de outra forma, exigiriam especialistas no assunto. Por exemplo, o Departamento de Defesa empregou sistemas especialistas para desenvolver software de manutenção que permitia aos usuários inserir dados diagnósticos e receber um relatório sobre a causa subjacente do mau funcionamento, bem como as soluções recomendadas.12 Embora se destacassem nas aplicações personalizadas, os sistemas especialistas eram incapazes de lidar com a resolução de problemas além de seu conhecimento pré-programado.13
A onda subsequente de progresso da IA ocorreu na década de 1990 com a criação do aprendizado de máquina. Ao contrário dos sistemas especialistas que precisavam ser programados manualmente, os algoritmos de aprendizado de máquina usavam dados de treinamento para “aprender” a executar tarefas e resolver problemas.14 Isso possibilitou que os desenvolvedores ajustassem os parâmetros dos modelos para alcançar os resultados desejados, gerando programas de IA extremamente flexíveis que poderiam ter um bom desempenho em novos ambientes. Mais avanços foram obtidos com o desenvolvimento de algoritmos de “aprendizado profundo” que usavam redes neurais vagamente modeladas nas do cérebro humano. A combinação do aprendizado profundo com gigantescos conjuntos de dados tornou possível a “visão computacional”, que é a base para diversas aplicações, de veículos autônomos a programas de reconhecimento facial.15
O avanço mais recente em IA foi apresentado ao mundo em novembro de 2022, quando a OpenAI lançou o ChatGPT, seu programa de grande modelo de linguagem (Large Language Model, LLM). O grande modelo de linguagem aproveita o fato de que a linguagem natural é organizada em ordem sequencial, criando conexões lógicas entre as palavras em uma oração. Pela leitura de uma quantidade muito grande de frases durante o treinamento, esses modelos tornam-se eficazes em prever a ordenação das palavras de maneira coerente.16 Peça ao ChatGPT para preparar um relatório de livro, criar um plano de negócios ou compor poesia, e ele o fará quase instantaneamente com alto grau de eficácia. E como as palavras são simplesmente uma forma de dados, essas novas técnicas não se limitam apenas à linguagem. Novas aplicações de IA generativa estão surgindo com a capacidade de criar imagens e vídeos, compor músicas e escrever código de computador.
Nos últimos anos, os avanços na IA resultaram em conquistas significativas. Em 2016, o programa de computador AlphaGo do Google DeepMind derrotou Lee Sedol, campeão mundial de Go, em uma partida de cinco jogos. Durante o segundo jogo, o AlphaGo fez uma jogada pouco ortodoxa que os especialistas inicialmente pensaram ser um erro. No decorrer do jogo, tornou-se evidente que o “erro” foi crucial para a vitória da máquina.17 Outro marco foi alcançado em 2020, quando um agente de IA derrotou de forma decisiva um piloto de caça de elite em um duelo aéreo (dogfight) virtual patrocinado pela Agência de Projetos Avançados de Pesquisa de Defesa. Quando questionado sobre suas perdas consecutivas, o piloto respondeu: “As coisas que costumamos fazer como pilotos de caça não estão funcionando”.18 Esses feitos não são apenas demonstrações impressionantes da proeza da IA em cenários complexos, mas também demonstram como a IA é capaz de aprender novas técnicas e estratégias que superam até mesmo os melhores seres humanos.
A corrida para desenvolver a IA militar
A IA já está vencendo em uma variedade de aplicações estreitas. Tanto os EUA quanto a China entendem isso e estão se apressando para incorporar a IA em suas estratégias militares. Em 2018, o Departamento de Defesa lançou sua primeira Estratégia de Inteligência Artificial (Artificial Intelligence Strategy), destinada a acelerar a adoção da IA pelas Forças Armadas dos EUA. O relatório destacou o fato de que a China estava “fazendo investimentos significativos em IA para fins militares”, que “ameaçam corroer nossas vantagens tecnológicas e operacionais”.19 Em 2019, a China publicou um livro branco de defesa, no qual argumentava que “estava em curso uma revolução em assuntos militares com características chinesas”.20 Fundamentado pelos novos avanços em tecnologias emergentes, o relatório enfatizou a importância da IA nas guerras futuras, já que o big data, a computação em nuvem e a internet das coisas estavam “adquirindo velocidade no campo militar”.21 A ideia de que a IA transformaria o caráter da guerra estava agora na vanguarda da estratégia militar de ambas as nações.
Ao contrário de algumas inovações militares importantes do passado, como o arco longo, a pólvora ou o carro de combate, que tinham usos relativamente específicos, a IA é uma tecnologia de emprego geral com uma gama diversificada de aplicações. Mais semelhante ao advento da eletricidade, que gerou avanços em iluminação, aquecimento, transporte e comunicações, a IA se difundirá por muitas outras tecnologias, aumentando consideravelmente suas capacidades e eficácia. Atualmente, nos setores de defesa dos EUA e da China, há uma proliferação de pesquisa e desenvolvimento de IA buscando uma variedade de usos militares, incluindo veículos autônomos, coleta de inteligência, logística preditiva, segurança cibernética e comando e controle. A corrida de IA não será decidida com base em uma aplicação específica, mas sim pelo lado que conseguir integrar melhor a IA em uma variedade de sistemas e processos em todos os domínios do combate.
Há muito tempo, os EUA têm sido o líder mundial no desenvolvimento de equipamento militar, viabilizado por uma forte cultura de inovação e base industrial de defesa bem estabelecida. Nos últimos anos, a China obteve progressos significativos com um foco intencional do Estado na modernização militar. No entanto, ambas as nações estão enfrentando um novo desafio na corrida por sistemas militares habilitados por IA. Ao contrário de muitas inovações tecnológicas do passado que foram desenvolvidas por meio de programas de pesquisa patrocinados pelo governo, a tecnologia de IA mais avançada de hoje está no setor privado. O acesso a essa tecnologia exige que o Departamento de Defesa e o ELP forjem novas parcerias com empresas para desenvolver aplicações de emprego dual. Os contratados de defesa usuais e as empresas estatais nos EUA e na China não conseguem acompanhar o ritmo da inovação em IA do setor privado.
A abordagem da China para resolver esse problema consiste na exploração do poder do Estado para aprofundar a integração público-privada por meio de uma estratégia de fusão civil-militar.22 Nos últimos anos, várias facetas da estratégia contribuíram com sucesso para uma maior integração entre o ELP e as empresas privadas chinesas. Dentre essas estão a criação de laboratórios conjuntos para viabilizar a pesquisa de emprego dual entre organizações militares, acadêmicas e comerciais; a criação da Agile Innovation Defense Unit (Unidade de Defesa para Inovação Ágil, em tradução livre), que tem como foco prover ao ELP o acesso a tecnologias comerciais; e patrocínios do ELP a desafios e competições destinados a promover soluções criativas para problemas militares.23 Além disso, a fusão civil-militar vem se mostrando bem-sucedida na expansão do alcance do ELP no setor comercial. Um estudo recente do Center for Security and Emerging Technology (Centro para Segurança e Tecnologia Emergente, em tradução livre) descobriu que o ELP adquiriu a maioria de seus equipamentos relacionados à IA de empresas privadas chinesas de tecnologia, e não de empresas estatais tradicionais.24 Embora a corrupção e as ineficiências burocráticas continuem sendo limitações do sistema autoritário da China, foram obtidos avanços impressionantes até agora.
Em contraste com a abordagem chinesa de cima para baixo, a estratégia estadunidense consiste em aproveitar sua economia de mercado vibrante e inovadora para gerar novas tecnologias militares habilitadas por IA. Com isso, o Departamento de Defesa busca reequilibrar a força, substituindo plataformas de combate tradicionais requintadas, guarnecidas e de alto custo por uma nova geração de sistemas descartáveis, autônomos e relativamente baratos. Por meio de uma iniciativa batizada de “Replicator”, o Departamento de Defesa estabeleceu a meta de implementar esses sistemas em uma escala de “vários milhares, em vários domínios, nos próximos 18 a 24 meses”.25 A fim de compensar a vantagem convencional relativa à massa do ELP, a Replicator busca complementar as capacidades convencionais dos EUA com grandes concentrações de sistemas habilitados por IA capazes de operar de forma eficaz em ambientes bastante disputados.
À frente do desenvolvimento dessas tecnologias está a Unidade de Inovação em Defesa (Defense Innovation Unit, DIU), criada para promover uma parceria mais estreita entre o Departamento de Defesa e o setor privado. Em 2023, a DIU foi elevada ao nível de unidade diretamente subordinada ao Secretário de Defesa, a fim de “catalisar o engajamento e o investimento em comunidades do setor privado onde a tecnologia comercial pode ser adaptada e aplicada para atender às exigências de nossos combatentes”.26 Em lugares como o Vale do Silício, as melhores empresas de IA comercial do mundo têm os conhecimentos especializados necessários para desenvolver aplicações de emprego dual de suas tecnologias, mas muitas vezes enfrentam dificuldades geradas pelos procedimentos de aquisição complicados do Departamento de Defesa. A DIU ajuda a superar esse desafio ao simplificar o processo, atraindo mais empresas não tradicionais ao setor de defesa. Isso permite mais inovação, uma variedade maior de aplicações de IA e uma adoção mais rápida desses sistemas nas Forças Armadas. À medida que a iniciativa Replicator avança, a DIU desempenhará um papel de liderança na coordenação do desenvolvimento de tecnologias de IA adaptadas às necessidades das Forças Armadas e dos comandantes de comandos combatentes.
Enxergando em meio à névoa da guerra
As operações militares são caracterizadas por uma “névoa” predominante, que existe pela incerteza intrínseca da guerra.27 A incapacidade de prever como a batalha irá se desenrolar faz parte da natureza essencial da guerra e não pode ser eliminada completamente. Parte da incerteza, no entanto, resulta da enorme quantidade de dados e informações que não podem ser processados com a rapidez necessária para que se compreenda claramente seu significado. As análises pós-ação dos centros de treinamento de combate rotineiramente destacam as deficiências das unidades que ficam sobrecarregadas com avalanches de informações. Os estados-maiores raramente conseguem sintetizar de forma eficaz os dados abundantes de forma a proporcionar clareza à situação geral. A pergunta “quem mais precisa saber?” é comumente feita, como uma técnica para compensar a tendência de que as informações permaneçam isoladas em “compartimentos” funcionais. Apesar do desenvolvimento de procedimentos de gestão do conhecimento destinados a melhor identificar, organizar, armazenar e disseminar informações, o problema fundamental da sobrecarga de dados ainda existe.
No campo de batalha moderno da atualidade, os sensores são quase onipresentes, transmitindo constantemente informações para os postos de comando militar. Os estados-maiores têm dificuldade para acompanhar o enorme volume de dados disponíveis: meios de informação, vigilância e reconhecimento fornecem dados sobre as forças inimigas por meio de uma combinação de imagens, feeds de vídeo, interceptações de sinais e detecções eletromagnéticas; forças amigas fornecem atualizações de status e solicitações de apoio por meio de diversos sistemas de comando e controle; e outros fatores, como mudanças meteorológicas, a presença de civis no campo de batalha ou a introdução de desinformação aumentam a complexidade do ambiente operacional. A enxurrada de dados disponíveis pode gerar um estado de “paralisia da análise” que impede a tomada de decisão eficaz. Quando são finalmente tomadas, as decisões não são mais relevantes para as condições atuais.
É nisso que a IA pode ajudar. Os sistemas de IA atuais e os computadores de alta potência que os executam conseguem processar grandes quantidades de dados em velocidades sem precedentes. Tarefas que os seres humanos normalmente levariam dias ou semanas para concluir podem ser cumpridas pela IA em questão de segundos. Veja o setor bancário, por exemplo. As instituições financeiras usam a IA para rastrear o uso do cartão de crédito em tempo real. Quando um comportamento irregular do comprador é detectado, as transações são recusadas antes que a fraude ocorra.28 Em comparação com os métodos tradicionais que dependem da verificação manual humana, os ganhos de eficiência resultantes são enormes. Além disso, os sistemas de IA estão se revelando mais precisos do que os especialistas humanos em diversas áreas. Por exemplo, na área médica, os sistemas de aprendizado de máquina estão demonstrando maior precisão na previsão de câncer do que médicos altamente treinados.29 A aplicação dessas mesmas tecnologias às tarefas militares comuns pode produzir ganhos semelhantes em eficiência e eficácia. Basicamente, a IA pode ajudar a eliminar parte da névoa da guerra.
Esses ganhos de produtividade permitirão, em última análise, uma tomada de decisão mais rápida e eficaz, o que é uma vantagem fundamental na guerra. John Boyd descreveu a competição militar por meio de um processo conhecido como o ciclo “observar, orientar, decidir, agir” (observe, orient, decide, act, OODA).30 A ideia de Boyd era que qualquer lado que executasse o processo mais rapidamente conseguiria se inserir no ciclo de decisão do oponente e obter uma vantagem militar relativa. Os sistemas de IA acelerarão muito o processo do ciclo OODA ao aumentar a consciência situacional, processar rapidamente grandes quantidades de informações, calcular as opções de decisão e automatizar operações. Os analistas de inteligência usarão a visão computacional para filtrar dezenas de imagens e vídeos a fim de localizar forças inimigas. Operadores empregarão enxames de drones para sobrecarregar as defesas inimigas. Especialistas em logística usarão a análise de dados para otimizar as missões de reabastecimento ou a manutenção dos equipamentos. Planejadores militares usarão grandes modelos de linguagem para redigir ordens de operações e gerar briefings de decisão. Guerreiros cibernéticos aproveitarão o aprendizado de máquina para identificar anomalias e impedir invasões de rede por adversários. Essas são apenas algumas das diversas aplicações iminentes da IA nas Forças Armadas.
Determinar a velocidade com que o ciclo OODA acelera dependerá, em parte, do nível de confiança que os seres humanos depositam na IA. Como acontece com qualquer tecnologia nova, a IA está sujeita a erros e exigirá aperfeiçoamento ao longo do tempo, à medida que continua evoluindo e amadurecendo. Para o futuro próximo, há boas razões para manter o controle e a supervisão humana, também conhecidos como “humanos no ciclo”. Por exemplo, a IA demonstra a capacidade de “alucinar”, produzindo saídas ou respostas que são plausíveis, mas não correspondem à realidade.31 Isso ocorre quando um modelo de IA faz uma inferência estatística baseada em seus dados de treinamento que conduz a resultados imprecisos quando aplicada a um ambiente do mundo real. Para um programa de IA de apoio a atividades militares, as consequências de um resultado falso podem ser graves. Outro desafio de muitos modelos de IA é que carecem de “explicabilidade”, ou seja, o sistema é incapaz de descrever a lógica e os dados subjacentes às suas conclusões.32 Por isso, as decisões parecem ser tomadas dentro de uma “caixa preta”, impedindo que os usuários acompanhem o processo mental do sistema. Essa falta de transparência exigirá que a confiança na IA militar seja construída ao longo do tempo por meio da experiência. A IA também é vulnerável a falsificações (spoofing), permitindo que um adversário ajuste as entradas de dados e conduzindo o modelo a conclusões falsas.33 Imagine usar um software de visão computacional para processamento de alvos que seja manipulado para concluir que forças amigas ou civis são alvos inimigos altamente compensadores. Por todas essas razões, a maioria das aplicações da IA militar no curto prazo provavelmente aumentará o papel dos seres humanos, em vez de substituí-los.
O Departamento de Estado adotou uma série de princípios éticos para o uso da IA com o intuito de orientar o desenvolvimento de novas tecnologias de forma segura e responsável.
Embora os EUA e a China tenham promulgado a governança de IA, as diferenças culturais podem influenciar a velocidade de adoção. Uma pesquisa recente revelou que 78% dos cidadãos chineses acreditavam que a IA trazia mais benefícios do que desvantagens, ao contrário de apenas 35% dos estadunidenses.34 Em 2020, o Departamento de Defesa adotou uma série de princípios éticos para o uso da IA com o intuito de orientar o desenvolvimento de novas tecnologias de forma segura e responsável.35 O ELP não divulgou um conjunto de princípios semelhante e aparenta estar menos limitado pelos riscos apresentados pela IA. Diferentemente do debate vigoroso nos EUA sobre a ética no emprego de sistemas militares autônomos, a discussão desse tópico está em grande parte ausente das fontes abertas chinesas.36 Essas perspectivas contrastantes na ética e regulamentação da IA podem influenciar a velocidade com que os EUA e a China adotam e integram a IA em suas respectivas Forças Armadas. Enquanto os EUA parecem mais cautelosos e intencionais em sua abordagem, a China parece ser menos limitada pelos possíveis riscos da IA.
Conclusão
Embora a tecnologia por si só não garanta o resultado da guerra, ao longo da história, as Forças Armadas que melhor inovam têm uma vantagem decisiva no campo de batalha.37 As Forças Armadas estadunidenses há muito desfrutam de superioridade tecnológica sobre seus adversários. No entanto, essa vantagem agora está diminuindo. O foco chinês em nível nacional na inovação em IA se manifestou na forma de avanços tecnológicos significativos, permitindo que o ELP alcançasse seu objetivo de se transformar em Forças Armadas de classe mundial. Dentro dessa atual rivalidade geopolítica, a competição para aproveitar o poder da IA moldará o equilíbrio global de poder nos próximos anos.
Preservar a superioridade militar dos EUA requer uma aceleração do desenvolvimento de IA em todo o Departamento de Defesa. Uma parceria reforçada com o setor privado é essencial ao alcance do progresso necessário para superar o ELP. Embora a estratégia chinesa de fusão civil-militar tenha produzido resultados impressionantes, as empresas de IA mais capacitadas estão sediadas nos EUA. Essas empresas, com sua mão de obra altamente qualificada e sua pesquisa de ponta, têm o potencial de produzir as aplicações militares mais avançadas de IA. O sistema estadunidense baseado no mercado tem uma vantagem única na promoção da inovação, mas o Departamento de Defesa deve continuar a se adaptar para aproveitar plenamente seu potencial. A atual iniciativa Replicator representa a maior aposta do Departamento de Defesa no desenvolvimento da IA. Seu sucesso é crucial para o futuro das Forças Armadas dos EUA.
Embora novas tecnologias estejam sempre sendo desenvolvidas, raramente apresentam um potencial tão grande quanto o da IA. A vantagem militar geralmente é obtida pelo lado que compreende melhor o ambiente, o inimigo e a si mesmo. As batalhas costumam ser vencidas por comandantes que tomam decisões bem fundamentadas e em tempo hábil. A IA é uma tecnologia que viabilizará tudo isso.
A revolução da IA nas Forças Armadas apenas começou. Como evoluirá — e se os EUA prevalecerão — dependerá da urgência com que iremos abordar essa oportunidade, da adaptabilidade de nossas organizações e da perseverança de nossa força. O potencial da IA é ilimitado, mas apenas se tivermos visão de futuro para compreendê-la e coragem para aceitar o desafio.
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O Cel Josh Glonek, do Exército dos EUA, é pesquisador do Army War College na Stanford University, onde realiza pesquisas sobre inteligência artificial e competição estratégica entre os EUA e a China. Formou-se na Academia Militar de West Point e tem mestrado em Políticas Públicas pela University of Chicago. Em missões recentes, Glonek serviu como oficial de operações de divisão na 10a Divisão de Montanha, comandante do 2o Batalhão, 87o Regimento de Infantaria, e como chefe de redação de discursos do Secretário de Defesa.
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