Nenhum “Crime Comum”
Uma Abordagem Alternativa para o Controle de Zonas Conflagradas e Áreas Densamente Urbanizadas ao Redor do Planeta
Cel Eugenia K. Guilmartin, Exército dos EUA
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Raramente, nosso planeta se mostrou um lugar tão pacífico como agora. Mesmo com conflitos terríveis em países como Congo, Síria e Iêmen, as guerras entre e dentro de Estados estão se tornando menos comuns e menos mortíferas. Contudo, uma ameaça sombria se aproxima. Algumas cidades do mundo em desenvolvimento correm o risco de serem devoradas pelo assassinato.
—The Economist
Sendo o Estado dissolvido em razão de alguma de suas “enfermidades”, não seria mais possível garantir a paz e a proteção dos indivíduos que firmaram o pacto social. Em razão disso, voltariam os homens a ter a liberdade (direito natural) de se protegerem por meio de quaisquer recursos que lhes aprouverem.
—Thomas Hobbes, O Leviatã
Hoje, o Exército dos EUA se defronta com um mundo complexo e incerto. Seus soldados obtiveram grande experiência operacional ao longo dos últimos 15 anos, mas não se sabe onde ou quando serão requeridos para lutar novamente. Ao mesmo tempo, a instituição inteira está passando por uma profunda reformulação — os componentes da doutrina, organização, treinamento/instrução, material, liderança, educação, pessoal, instalações físicas e políticas adotadas (DOTMLPF-P, na sigla em inglês) encontram-se submetidas a uma análise minuciosa. Dentro desse contexto, os líderes do Exército se preparam para o futuro, identificando as ameaças mais evidentes e mais perigosas, assim como os ambientes operacionais mais prováveis, como as áreas densamente urbanizadas, por exemplo1. Para aqueles que se perguntam “em que áreas turbulentas ou “hotspots” ao redor do mundo o Exército está menos preparado para ser empregado?”, a resposta já está embutida na própria pergunta. Atualmente, não estamos bem preparados para nenhuma das ameaças mais prováveis. Procuramos respostas organizadas por local, buscando diligentemente por zonas conflagradas, nações hostis e Estados falidos, em detrimento da identificação das tendências globais. Embora um estudo sério das ameaças com poder de combate equivalente seja necessário — incluindo as operações de combate em larga escala que se inserem nos mais letais de todos os cenários possíveis — nossa busca por lugares e espaços cria um ponto cego que nos leva a perder de vista o mais importante fator de instabilidade: o crime. Os limites, fronteiras e características fisiográficas não são importantes para criminosos que exploram outros em benefício próprio. A América Latina é um bom exemplo de uma região que sofre com a nossa falta de atenção. Como The Economist observou em abril de 2018:
A América Latina, que possui apenas 8% da população mundial, representa 38% dos assassinatos criminosos do planeta. A carnificina na região chegou a cerca de 140.000 pessoas no último ano, mais do que foi perdido em todas as guerras por todo o mundo em quase todos os anos deste século2.
Embora seja tentador desconsiderar os efeitos globais do “crime comum” nos países em desenvolvimento, enquanto mantivermos o Exército focado apenas nas ameaças com poder de combate equiparado e nos atores patrocinados por Estados, continuaremos a enfrentar a insegurança global sem solução.
Reconsiderando o Projeto das Megacidades
A questão que envolve as megacidades, isto é os núcleos urbanos com 10 milhões de habitantes ou mais, veio à tona com a publicação, em 2013, de Out of the Mountains (“Fora das Montanhas”, em tradução livre) de David Kilcullen, um especialista em contrainsurgência3. Em um artigo, de 2012, Kilcullen ofereceu sua visão de um ambiente operacional futuro marcado por três “megatendências”: (1) a urbanização e a migração em massa para as megacidades, (2) a “litoralização” (i.e., o crescimento explosivo das cidades costeiras com portos marítimos) e (3) a conectividade das populações por meio de tecnologias de comunicações mais acessíveis4. Kilcullen demonstrou preocupação com as áreas em desenvolvimento da Ásia, América Latina e África5. Ele advertiu:
Esses dados [das Nações Unidas] mostram que as cidades costeiras serão inundadas por uma onda humana que as obrigarão a absorver — em menos de 40 anos — quase todo o aumento da população mundial desde o início da História documentada até 1960. Além disso, praticamente toda essa urbanização ocorrerá nas áreas menos desenvolvidas do planeta, por definição os menos preparados para lidar com isso: uma receita para conflito e crises em saúde, educação, governança, alimento, energia e abastecimento de água6.
Considerando a escala e a abrangência do cenário mencionado acima, não surpreende o fato de que estrategistas militares começaram a estudar minuciosamente as áreas densamente urbanizadas. Infelizmente, as discussões subsequentes se ativeram em torno de soluções materiais e do terreno físiográfico em vez de pessoas. O Grupo de Estudos Estratégicos do Comandante do Exército abordou as megacidades em seu relatório, de 2014, “Megacities and the United States Army: Preparing for a Complex and Uncertain Future” (“Megacidades e o Exército dos Estados Unidos: Preparando para um Futuro Complexo e Incerto”, em tradução livre)7. Esse projeto fez muitas perguntas relevantes, mas se manteve centrado, principalmente, no terreno8.
O novo Manual de Campanha 3-0, Operações (FM 3-0, Operations), fez pouco para aperfeiçoar nosso entendimento acerca do impacto do crime na segurança global. A atual doutrina reconhece que, “Inimigos empregarão táticas convencionais, terror, atividade criminosa e guerra de informação para dificultar ainda mais as operações”9. No entanto, o FM 3-0 menciona o crime apenas sete vezes, e sempre em um contexto no qual as ameaças criminosas fazem parte de uma operação de combate de maior envergadura10. Nossas narrativas atuais contrastam com o que sabemos sobre a América Latina. Essa região não é considerada, atualmente, um hotspot ou uma área conflagrada, contudo seus índices de urbanização e criminalidade são uma preocupação global. A revista The Economist ressalta que, já em 2000, mais de 75% da América Latina morava em áreas urbanas — aproximadamente duas vezes a proporção verificada na Ásia e na África”11. A urbanização incontida resulta em mais instabilidade, e a história da América Latina serve como alerta para outras regiões:
Embora também tenha reunido os fatores necessários para o crescimento econômico, o êxodo rural concentrou nas cidades os fatores de risco para incremento da violência letal — desigualdades socioeconômicas, população masculina jovem e desempregada, famílias deslocadas, serviços governamentais deficientes e facilidade de acesso a armas de fogo. Na medida em que outros países em desenvolvimento alcançam o mesmo nível de urbanização da América Latina, torna-se do interesse nacional entender os vínculos existentes entre o processo de urbanização e o crescimento da criminalidade, e quais formas de policiamento são melhores para enfrentar o problema12.
Análises Minuciosas dos Dados Criminosos
Para entender os temores e as necessidades básicas de segurança de pessoas comuns nos países em desenvolvimento, precisamos nos esforçar para entender o crime nessas comunidades. O Estudo de Vitimização do Crime Internacional (International Crime Victimization Study — ICVS), apoiado pelo Instituto Inter-regional das Nações Unidas para Pesquisas sobre Crime e Justiça, realizou, no ano de 2000, uma série de pesquisas de opinião padronizadas “nível cidade” na Europa Central e Oriental, África, América Latina e Ásia. Mais de 53 mil entrevistados foram indagados em sua língua nativa sobre suas experiências com crimes, como furto de veículos automotivos, agressão, agressão sexual e roubo; sua satisfação com a polícia; percepções sobre a segurança na comunidade; razões para denunciar ou não os crimes; além de informações sociais, econômicas e demográficas13. O mérito dessa pesquisa de opinião foi descobrir crimes que não seriam, de outra maneira, incluídos nos arquivos governamentais, em virtude da ausência de registros por se tratar, muitas vezes, de crimes de menor gravidade; acervo deficiente de ocorrências policiais; corrupção de órgãos policiais e do poder judiciário; e vergonha, medo ou culpa dos entrevistados. Embora o ICVS não seja perfeito, o criminologista Irshad Altheimer declara que a pesquisa é “atualmente a fonte mais ampla e confiável de dados de vitimização do crime em diversas nações”14.
O que as pesquisas de opinião podem nos esclarecer sobre a insegurança em todo o planeta? Dentre os dados coletados pela pesquisa do ICVS, em 2000, consta a incidência de roubos e assaltos durante o último ano, bem como os índices de todos os crimes violentos dos quais os indivíduos se tornaram vítimas (incluindo roubo e agressão sexual). A pesquisa abordou o furto de motocicletas e outros roubos. Embora, a princípio, o roubo talvez não parecesse impactar severamente a segurança, as motocicletas são um importante meio de comércio e de transporte nas megacidades congestionadas e nas nações em desenvolvimento. O furto de uma moto, tuk-tuk (triciclo indiano) ou lambreta pode ser um evento significativo na vida de alguém que depende dele para seu sustento financeiro. O ICVS perguntou há quanto tempo os entrevistados moravam em suas comunidades (um indicador de fluxos populacionais); com qual frequência saiam durante a noite para ir a um restaurante, boate ou bar (um indicador de sociabilidade);se as pessoas foram vítimas de fraudes contra o consumidor; quão útil lhes parecia a polícia (confiança no policiamento comunitário); quão bem as pessoas pensavam que os membros da comunidade local cuidavam uns dos outros (e.g., uma rede de segurança social); e quão seguras as pessoas se sentiam em suas casas durante a noite.
Para melhor entender a vida nos países em desenvolvimento, esta autora utilizou um software estatístico a fim de analisar as respostas de todas as 53 mil pessoas entrevistadas, buscando com isso identificar fatores específicos. Foram encontrados quatro fatores principais, conforme mostra a Figura 1.
O Fator 1, “Crimes contra Pessoas”, diz respeito aos crimes violentos, tráfico de drogas e crimes comuns aos quais Kilcullen fez referência em seu trabalho. As experiências pessoais de vitimização dos entrevistados encontram-se intimamente associadas a esse fator e incluem roubo, agressão e outros crimes violentos. O Fator 2, “Estabilidade e Resiliência”, demonstra forte relação entre a existência de uma “rede de segurança social”, “sentimento de segurança em casa durante a noite”, “confiança no policiamento comunitário” e baixos níveis de “crime contra o consumidor”. O Fator 3, “Mobilidade e Sociabilidade”, se refere à vida urbana jovem e pulsante nas cidades em desenvolvimento. Os entrevistados com alta pontuação nesse fator exibiram, também, altos níveis de mudança de domicílio [O que sugere a inexistência de espaços urbanos segregados — N. do T], “sociabilidade” e “segurança em casa durante a noite”. Curiosamente, relatos de “sentimento de segurança em casa durante a noite” são significativos tanto para o fator de Estabilidade e Resiliência quanto o fator de Mobilidade e Sociabilidade. Isso se revela, portanto, um poderoso indicador da segurança de uma comunidade. O Fator 4, “Crimes contra a Propriedade”, está relacionado obviamente aos relatos de crimes contra a propriedade, incluindo o furto de motocicletas.
Em geral, esses quatro fatores são interessantes. Diferentes tipos de crime se aglomeram no Fator 1 — representando crime e instabilidade — mas essas experiências negativas parecem não estar relacionadas, tampouco depender, dos outros sentimentos e percepções de segurança. Além disso, os Crimes contra Pessoas (i.e., crimes violentos) não estão diretamente relacionados aos Crimes contra Propriedade, como os pequenos crimes ou roubos. O fator de Mobilidade e Sociabilidade engloba muitas das características que esperamos encontrar em um morador de uma área densamente urbanizada. Contudo, essas pessoas relatam, com frequência, elevada confiança de estarem seguras em casa durante a noite — algo que parece não ser consenso para os países em desenvolvimento. O fator de Estabilidade e Resiliência mostra uma concentração de diferentes variáveis que medem a relação entre o cidadão e a sociedade, expressando confiança ou o descrédito na economia, na polícia e na própria comunidade. Esse fator é especialmente interessante porque ele não apenas demonstra uma relação entre o sentido de segurança e a confiança em outros membros da sua coletividade, mas também oferece soluções viáveis específicas: melhorias no policiamento e redução de fraude.
Uma análise dos dados sugere, também, que nossos focos regionais atuais na Ásia, África e Europa talvez não contemplem as áreas de maior necessidade. A Figura 2 mostra a pontuação total da Estabilidade e Resiliência por região. Tanto a Ásia quanto a África ficam na média ou acima da média. Os residentes asiáticos — mesmo aqueles em áreas de desenvolvimento, como Manila — se destacam positivamente nesse quesito. O que chama a atenção é a baixa pontuação para os entrevistados na América Latina e na Europa Oriental/Central. Embora essa análise seja preliminar, ela mostra como um exame do crime pode influenciar a estratégia.
Recomendações de Financiamento e Prontidão
Conforme o Exército comece a reconsiderar mais o impacto do crime e das ameaças híbridas no futuro, quatro recomendações preliminares se sobressaem.
Aumentar a especialização regional. Ao longo dos últimos 15 anos, o Exército já introduziu várias iniciativas para promover a especialização regional, incluindo assessores culturais incorporados nas unidades, a iniciativa Afghanistan-Pakistan Hands Program [Gerentes financeiros das Forças Singulares dos EUA que são treinados nas culturas afegã e paquistanesa e seus processos e sistemas de gerenciamento financeiro — N. do T.], a estrutura de “alinhamento regional” das forças e as novas brigadas de assistência às forças de segurança. Iniciativas como essas valem a pena, se são adequadamente financiadas? Essa pesquisa sugere que sim. Uma estratégia eficaz deve desenvolver relações contínuas entre unidades dos EUA e seus parceiros nacionais, ampliando familiaridade com culturas diferentes, fomentando confiança e aumentando a prontidão de ambas as partes. Uma estratégia eficaz também mantém e estende aquilo que é conhecido como “Fase 0” (Moldar) das operações conjuntas para promover a estabilidade, moldar o ambiente operacional, dissuadir adversários e prover uma base de conhecimento relativa à vida da população local. Tais operações de “modelagem” permitem uma escalada mais rápida ao combate, se necessário (i.e., transição para a “Fase 3” Dominar)15. As unidades do Exército fazem parceria com aliados na América Central e do Sul, na Ásia, no Oriente Médio, na África e por toda a Europa. Na medida em que os indicadores regionais melhor explicarem a variação dos principais fatores associados à “Estabilidade e Resiliência”, nossos alinhamentos regionais poderão ser mais sensatos. Cada região é diferente em relação ao modelo apresentado, sugerindo que seria prudente que o Exército abrangesse todas elas, em vez de se concentrar em uma ou duas, excluindo as demais. As megacidades, contudo, não se sobressaem como peculiarmente vulneráveis, instáveis ou em risco na análise estatística apresentada neste artigo. Portanto, não devemos ser demasiadamente preocupados se nossas parcerias nos levam a áreas de treinamento em Camarões em vez de reconhecimentos do terreno no Rio de Janeiro.
Concentrar os postos de ampliação de conhecimento nas indústrias certas. Outra recomendação do Projeto das Megacidades do Exército se relaciona ao desenvolvimento de liderança institucional, recomendando “parcerias civil-militares para facilitar o treinamento, teste e experimento nas grandes cidades dos EUA”16. Embora exista muito valor em passar um ano como bolsista interagências com a Capitania dos Portos de Nova York ou com o Departamento da Polícia de Los Angeles, essas atividades não preenchem a maior lacuna em nosso conhecimento institucional — entendendo como legítimo o comportamento político, social e econômico das pessoas responsáveis por essa decisão. Seríamos mais beneficiados, por exemplo, se adotarmos um programa de Training with Industry (Treinando com a Indústria) com uma empresa como Goya Foods, a marca icônica de comida internacional. A Goya atraiu a atenção da escritora de negócios do Washington Post, Lydia DePillis, que a considerou a mais conhecida “companhia de alimentos entre as pessoas recém-chegadas nos EUA”17. A Goya opera segundo um modelo de negócios de entrega direta às lojas, respeitando os sabores e culturas de cada comunidade oferecendo-lhe produtos específicos — sejam caribenhos, asiáticos, salvadorenhos ou filipinos — ao invés de enviar um portfólio único de produtos a todos os supermercados, como talvez faça uma grande empresa de alimentos18. Ainda que esse modelo talvez limite o crescimento da Goya, isso lhe assegura clientes leais e o êxito do empreendimento. O vice-presidente executivo encarregado da distribuição, Peter Unanue, disse:
Para nós, é importante fazer uma conexão por meio de um produto do qual, talvez, não vendamos carregamentos inteiros, mas vamos manter o produto sempre nas prateleiras, para que quando um cliente entrar na loja ele possa dizer, “Uau, posso me relacionar com a Goya porque ela é autêntica, esse produto me faz sentir em casa”19.
Entender o foco da Goya nas microcomunidades e na sua pesquisa de mercado de precisão é o tipo de oportunidade educacional que devemos buscar para qualquer oficial do Exército (e não apenas para o pessoal de logística) que está envolvido em planejamentos futuros, análises de inteligência ou formulação estratégica. Os programas Training with Industry realizados com a Google, FedEx e outros grandes parceiros civis agregam grande valor tanto à própria organização anfitriã quanto ao Exército. Não devemos, contudo, confundir o propósito dessas grandes empresas — serviços e produtos lucrativos de grande escala — com a missão do Exército, que é a promoção de segurança com recursos limitados ante ameaças adaptáveis. Na realidade, entender a importância cultural de molho de adobo e arroz con pollo (arroz com frango) pode nos ensinar tanto quanto as complexidades da pontualidade na entrega.
Aumentar as habilidades técnicas/acadêmicas. O Projeto das Megacidades pergunta, “Quais paradigmas institucionais precisam ser mudados para preparar o Exército para vencer nesse ambiente emergente?”20 O paradigma mais importante que o Exército precisa adotar é dedicar-se inteiramente ao entendimento e ao monitoramento contínuo das tendências globais para avançar em seu estado de prontidão. Hoje, não temos capacidades suficientes por toda a força para identificar essas tendências e analisar os dados disponíveis. O Exército possui um número limitado de estatísticos, economistas, criminologistas, cientistas políticos, antropólogos, especialistas em inteligência policial, pessoal de assuntos civis/operações psicológicas, profissionais da área de inteligência e analistas de sistemas/pesquisa operacional. Além disso, temos um número restrito de oficiais de estado-maior e de graduados que, realmente, estão familiarizados com as técnicas básicas de extração de dados e de pesquisa para utilizar a abundância de informações disponíveis em fontes abertas e sigilosas a fim de melhor entender o mundo. Frequentemente, o Exército contrata profissionais terceirizados para realizar tais estudos. Quando isso ocorre, não podemos avaliar a qualidade do trabalho recebido. Entender pormenorizadamente o ambiente operacional é uma competência central que não deve ser terceirizada.
Estruturar a Força para combater às ameaças criminosas/híbridas. Kilcullen recomenda que os Estados Unidos façam um esforço consciente para fechar as lacunas exploradas pelas ameaças híbridas21. Ele recomenda que organizemos nossas Forças para o futuro com uma estrutura ágil e flexível, que nos permita combater criminosos, piratas, terroristas e outras redes de ameaças:
Os governos, como os Estados Unidos, que fazem distinções legislativas muito nítidas entre a guerra e a imposição da lei, e entre as autoridades internas e externas, não podem operar com a mesma agilidade [do que as ameaças]. Os empreendimentos que combinam policiamento, administração e serviços de emergência com uma força militar apta a lidar com adversários não estatais — capacidades tradicionalmente associadas a forças nacionais de segurança, como a Gendarmerie francesa, os Carabineiros italianos ou a guarda costeira dos EUA — têm chances de serem mais efetivos contra essas ameaças híbridas dos que os exércitos e marinhas tradicionais22.
A força do futuro sugerida por Kilcullen mistura o policiamento altamente especializado e as habilidades de combate. Uma organização de policiamento focada na estabilidade e centrada na população pode influenciar positivamente o cerne do fator “Estabilidade e Resiliência”: uma avaliação positiva quanto a sentir seguro em casa durante a noite, respaldada por avaliações positivas da polícia local.
Onde (Ou Talvez o Que) Está Por Vir?
Os dados de vitimização do crime internacional sugerem que os residentes das megacidades e das áreas urbanas nos países em desenvolvimento não relatam mais vitimização do crime violento do que os que moram em outros lugares e, talvez, tenham menos crime de propriedade e maior estabilidade/resiliência23. A visão geral para essas metrópoles não é particularmente sombria. Parece que as diferenças regionais são mais importantes. A implicação para as Forças Armadas dos EUA é uma maior necessidade de monitorar e entender as tendências regionais e globais de forma continuada. O ICVS de 2000 previu com exatidão a epidemia de crimes que ocorreu na América Latina em 2018. Entretanto, havia alguém no governo federal dos EUA acompanhando essas tendências criminosas pelo ponto de vista de segurança global? Essa é a questão.
A percepção do indivíduo de sentir-se seguro em sua casa durante a noite é crítica. Aqueles que têm percepções de segurança mais elevadas também concordam com a relevância do trabalho policial. Para se preparar para as ameaças do futuro, o governo federal deve explorar métodos centrados na população, como tutorias policiais para melhor atingir os objetivos estratégicos juntamente com outras estratégias mais centradas nas ameaças ou no terreno. Essas teorias e abordagens não são novas. Thomas Hobbes entendeu os impactos desastrosos do crime, do oportunismo e da anarquia na sociedade, embora tenha vivido em um período de guerra convencional entre potências globais24. Hoje, The Economist ressalta um grande “ponto cego”:
O assassinato já supera a guerra como causa de mortes. E o mundo continua a se urbanizar. A Índia e a China já acomodam grandes contingentes populacionais urbanos enquanto mantêm níveis de criminalidade relativamente baixos, em parte devido ao crescimento econômico. Contudo, outros países mostram muitos dos fatores de risco já vistos na América Latina há uma geração: grande número de deslocados como resultado de conflitos, milhões de armas remanescentes, explosão demográfica, pouco em termos de redes de segurança, forças policiais corruptas e ineficientes25.
Seria prudente que o Exército dos EUA considerasse holisticamente o impacto do crime e seus reflexos na segurança, enquanto fica atento às tendências globais e regionais. Afinal, o crime comum contras pessoas comuns em outros continentes talvez não seja tão apavorante quanto ameaças com poder de combate equiparado, mas seus efeitos nocivos impactam negativamente a segurança global.
A análise de dados e a pesquisa original citadas neste artigo foram apresentadas em um estudo preparado para a reunião anual de 2016 da Midwest Political Science Association, intitulado “Nasty and Brutish or Stable and Social? Perceptions of Safety in Megacities” (“Desagradáveis e Cruéis ou Estáveis e Sociais? Percepções de Segurança nas Megacidades”, em tradução livre). A autora reconhece o apoio de Bob Dixon e colegas do Grupo de Estudos Estratégicos do Comandante do Exército (Chief of Staff of the Army Strategic Studies Group), além de parceiros norte-americanos e internacionais que deram suas opiniões sobre o policiamento e as operações de combate em ambientes rurais e urbanos. As opiniões e análises feitas neste artigo são as da autora e não refletem qualquer posição oficial do Departamento do Exército ou do Departamento de Defesa.
Referências
- Epígrafe.Thomas Hobbes, Leviathan, ed. C. B. Macpherson (Harmondsworth, UK: Penguin Classic, 1968), p. 337.
- Para antecedentes históricos sobre as revisões iniciais pós-Operação Operation Iraqi Freedom e pós-Operação Enduring Freedom, veja U.S. Army Training and Doctrine Command (TRADOC) Pamphlet 525-3-1, The U.S. Army Operating Concept: Win in a Complex World, 2020–2040 (Fort Eustis, VA: TRADOC, 31 Oct. 2014).
- “Shining Light on Latin America’s Homicide Epidemic”, The Economist (website), 5 Apr. 2018, acesso em: 21 set. 2018, https://www.economist.com/briefing/2018/04/05/shining-light-on-latin-americas-homicide-epidemic.
- David J. Kilcullen, Out of the Mountains: The Coming Age of the Urban Guerrilla (New York: Oxford University Press, 2013).
- David J. Kilcullen, “The City as a System: Future Conflict and Urban Resilience”, The Fletcher Forum of World Affairs 36, no. 2 (Summer 2012): p. 21.
- Ibid., p. 22.
- Ibid.
- Chief of Staff of the Army’s Strategic Studies Group, “Megacities and the United States Army: Preparing for a Complex and Uncertain Future” (Arlington, VA: Office of the Chief of Staff of the Army, June 2014), acesso em: 21 set. 2018, https://www.army.mil/e2/c/downloads/351235.pdf.
- Veja Eugenia K. Guilmartin, “Nasty and Brutish or Stable and Social? Perceptions of Safety in Megacities” (manuscrito não publicado, April 2016), Annex C, preparado para a reunião anual de 2016 da Midwest Political Science Association’s annual meeting. Para ilustrar, uma análise de conteúdo do documento mostra que há quase duas vezes mais referências para terreno físico (i.e., “infraestrutura”, “prédio”, “porto”) do que para terreno humano (i.e., “líder”, “refugiado”, “população”).
- Field Manual (FM) 3-0, Operations (Washington, DC: U.S. Government Publishing Office [GPO], October 2017), para. 1-4.
- A pesquisa pelo documento pelo autor para “crime”, “criminoso” e outras variações. Os autores do FM 3-0 reconhecem que o “FM 3-0 se concentra nas ameaças de poder de combate equiparado nas operações de combate de grande vulto”. Ibid., pará. 1-38.
- “Shining Light on Latin America’s Homicide Epidemic”.
- Ibid.
- International Working Group, Anna Alvazzi del Frate, Jan J. M. van Dijk, John van Kesteren e Pat Mayhew, International Crime Victimization Survey (ICVS), 1989-2000, ICPSR version (Netherlands: University of Leiden/Turin, Italy: United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute [producers], 2002; Ann Arbor, MI: Inter-university Consortium for Political and Social Research [distributor], 2003).
- Irshad Altheimer, “Do Guns Matter? A Multi-level Cross-National Examination of Gun Availability on Assault and Robbery Victimization”, Western Criminology Review 9, no. 2 (2008): p. 15.
- Joint Publication 3-0, Joint Operations (Washington, DC: U.S. GPO, 2017), fig. V-7.
- Strategic Studies Group, p. 22.
- Lydia DePillis, “How Goya Brought Ethnic Food to White America”, Washington Post (website), 23 Aug. 2013, acesso em: 24 set. 2018, https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2013/08/23/how-goya-brought-ethnic-food-to-white-america/.
- Ibid.
- Peter Unanue, citado em DePillis.
- Strategic Studies Group, “Megacities and the United States Army”, p. 22.
- Kilcullen, “The City as a System”, p. 32.
- Ibid.
- Guilmartin, 2016.
- Internet Encyclopedia of Philosophy, s.v. “Thomas Hobbes: Moral and Political Philosophy”, acesso em: 24 set. 2018, https://www.iep.utm.edu/hobmoral/.
- “Shining Light on Latin America’s Homicide Epidemic”.
A Cel Eugenia K. Guilmartin, da Polícia do Exército dos EUA, é atualmente o subcomandante da Escola de Polícia do Exército dos EUA em Fort Leonard Wood, Missouri. É bacharel pela Academia Militar dos EUA, em West Point, mestre pelo Naval War College e doutora em Ciência Política pela Stanford University. Já serviu na Alemanha, nos Bálcãs, na Coreia, no Iraque e no Afeganistão, conduzindo orientações em policiamento e em operações de detenção em presídios, controle de detidos e operações de apoio de segurança e mobilidade. É membro da Associação Internacional de Chefes de Polícia e da Midwest Political Science Association.
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