Revista Profissional do Exército dos EUA

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Artigos em Destaque

(Data de publicação original: Military Review Edição Brasileira Março-Abril 2010)

Competência X Caráter? Ambos São Necessários!

Ten Cel Joe Doty e

Maj Walter Sowden, Exército dos EUA

As opiniões expressas neste artigo são dos autores e não refletem as da Academia Militar dos EUA, do Departamento do Exército ou do Departamento de Defesa.

A competência sem o caráter é uma perversão e a nossa maior ameaça.

—Dr. James Toner1

Visualize um Exército no qual os soldados nunca tenham de assistir a aulas e a slides de PowerPoint sobre ética e liderança. Imagine um Exército sem aulas que se concentrem exclusivamente nos sete valores do Exército. Considere um Exército no qual o desenvolvimento de caráter é intencionalmente parte de, literalmente, tudo o que fazemos. Parece fantasioso e absurdo? Não deveria.

Conforme nosso Exército olha para o futuro, precisamos examinar como formamos e desenvolvemos soldados e líderes para que possuam o caráter e a competência que compõem o contrato não negociável entre nossa nação e seus profissionais militares. Nossa proposta é que nos livremos de praticamente todo o treinamento e ensino isolados em desenvolvimento ético e de caráter em todo o Exército. Nada mais de aulas sobre assédio sexual. Nada mais de aulas sobre a “lei de guerra terrestre”. Nada mais de orientações jurídicas sobre conflito de interesse e aceitação de suborno. Em vez disso, nossa proposta é incorporar o ensino de ética e caráter em tudo o que fazemos, em todos os canais de treinamento, todas as experiências educacionais, tudo. Essa significativa mudança cultural não só será mais produtiva e eficiente, como também acabará sendo mais eficaz e mais acertada pedagogicamente e exigirá menos recursos.

Entendemos que pedimos uma transformação enorme e revolucionária ao propor isso agora. Os líderes do Exército terão de mudar radicalmente sua mentalidade e abordagem em relação ao treinamento, ensino e desenvolvimento de caráter dos nossos soldados. Essa total mudança cultural na forma como o Exército treina, educa e desenvolve os soldados não será divertida ou fácil. Esse tipo de mudança em uma organização tão grande, diversificada e eficaz como o Exército terá de vir de cima para baixo e de baixo para cima.

Em que Pé Estamos?

Qual é o motivo dessa proposta? Por que agora? Nosso Exército continuará a operar em alguns dos ambientes mais moralmente ambíguos e complexos da história — sem um final à vista. Nosso chefe de Estado-Maior, general George Casey, chama, apropriadamente, a presente época de era de conflito persistente. Casey e outros líderes mais antigos reconhecem que a presente época terá um efeito no desenvolvimento e no ambiente moral e ético do nosso Exército.

Instruções de segurança com soldados e praças da Força Aérea da equipe de reconstrução provincial de Kapisa-Parwan, na base avançada de operações Morales-Frazier, na Província de Kapisa, Afeganistão, 13 de agosto de 2009, antes de uma missão. (Departamento de Defesa, Sgt Teddy Wade)

O nosso é, sem dúvida, o Exército mais competente, experiente, bem treinado e equipado do mundo. Nossos modelos, sistemas e centros de treinamento são, de longe, os melhores, mais avançados e mais eficazes do mundo, e nossa superioridade tecnológica é igualmente impressionante. O nosso é um Exército em que o “treinamento é rei”. E com razão. Contudo, ao olharmos para o futuro e nos examinarmos de forma crítica (como devem fazer os profissionais), constatamos um descompasso entre competência e caráter.

Curiosamente, esse mesmo tema foi abordado há 12 anos pelo coronel Darryl Goldman, agora reformado, no artigo “The Wrong Road to Character Development”, na edição em inglês de janeiro-fevereiro de 1998 da Military Review. Em seu artigo, Goldman também enfocou a necessidade de uma mudança cultural em função da natureza compartimentada do nosso treinamento de “caráter”. Observou, de forma acertada, que, no Exército, “não proporcionamos aos jovens o treinamento e a educação necessários para o devido desenvolvimento e mudança cognitiva” — o que significa que os atuais métodos não estão produzindo os efeitos que desejamos2.

[…] 90% dele se concentra em desenvolver a competência, enquanto menos de 10% se refere ao ensino de caráter.

Sinais do Problema

Uma análise recente do currículo do Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva (Reserve Officer Training Corps — ROTC) do Exército revelou que mais de 90% dele se concentra em desenvolver a competência, enquanto menos de 10% se refere ao ensino de caráter. Além disso, apenas cerca de 5% da instrução do Comando de Instrução e Doutrina do Exército dos EUA (Training and Doctrine Command — TRADOC) no sistema de ensino tanto de oficiais quanto de graduados se concentra na ética e na liderança. É essa proporção de 5% de caráter para 95% de competência que o Exército quer defender?

E quanto ao treinamento e ensino voltados ao caráter em nossas unidades? O descompasso entre competência e caráter existe em nossas unidades (em termos de tempo devotado a cada um), e as experiências o agravam. Por exemplo, examine o cronograma de treinamento de qualquer unidade e compare o tempo gasto em competência com o tempo despendido em caráter. Quantas vezes um grupo de combate teve de repetir um exercício tático porque ele não correu conforme o planejado? Compare isso com o número de vezes que um instrutor teve de repetir uma aula sobre os valores do Exército. Está claro que há um descompasso. Além disso, o Exército começou, recentemente, a eliminar vagas para capelães nas escolas mediante um plano de transferir as aulas de ética para o ensino a distância. Por muitos anos, essas aulas foram de responsabilidade dos capelães. Todos esses são exemplos de uma incapacidade sistêmica de entender e implantar uma estratégia holística de ensino e desenvolvimento de liderança ética para o nosso Exército.

O Exército, inconscientemente, adotou um modelo empresarial ineficaz de treinamento de caráter. Contudo, as pessoas aprendem melhor a partir da experiência. Treinar para ensinar uma habilidade inclui tentar encaixar uma grande quantidade de experiências em um curto espaço de tempo. Isso se dá normalmente por meio de uma palestra ou aula. Essa abordagem só é eficaz se a intenção é munir o aluno de uma habilidade. Esse é um ótimo método se o resultado almejado é ensinar um soldado como carregar e limpar uma arma ou trocar o pneu de um caminhão. Contudo, essa não é a forma de desenvolver alguém, especialmente no campo moral ou ético. Não se pode ensinar como reconhecer um dilema moral, avaliar os efeitos potenciais de uma decisão e portar-se de forma moralmente correta por meio de uma apresentação de PowerPoint. A única forma de fazer isso é desenvolver — mudar — uma pessoa3.

Como em relação à maioria dos temas que ensinamos no Exército, atualmente transmitimos a ética e os valores de forma compartimentada. Isso fica evidente quando se examinam os cronogramas de treinamento das unidades. Designamos os cursos enquadrados na categoria de educação moral e ética (respeito, ética na guerra, assédio sexual, violência doméstica e no trabalho, etc.) como “treinamento obrigatório” ou “ensino em cadeia”. Para executar esse treinamento, o Exército normalmente envia apresentações “enlatadas” de PowerPoint para os comandantes e instrutores, ordenando-lhes que treinem todos os integrantes da unidade sobre um tema específico antes de certa data. Essas aulas consistem em sessões de uma hora no cronograma de treinamento da unidade. Durante essa hora, o comandante ou algum outro líder da unidade apresenta o treinamento. Depois que o treinamento é concluído, coloca-se um “X” na lista de conferência e a unidade passa para a tarefa seguinte.

Esse método não é uma forma eficaz de desenvolver um indivíduo ou incutir um valor referente à cultura de uma organização4. Na verdade, pode ter o efeito contrário. Esse método de transferir conhecimentos sobre esses importantes assuntos não é exclusivo das unidades valor companhia. É como o treinamento moral e ético ocorre em todos os níveis do Exército. Infelizmente, não funciona e talvez seja até contraproducente:

Essa tendência de criar iniciativas novas e isoladas para tratar vários tipos de má conduta em relações humanas constitui o fracasso fundamental na forma como as forças militares americanas abordam o desenvolvimento de caráter desde o governo Eisenhower. Presumimos continuamente que as iniciativas isoladas de abordar a ética, moralidade ou valores sejam importantes só porque elas dão a impressão de que “estamos fazendo algo”. Na verdade, essa fé enganosa em projetos novos e desconectados é um sinal de que eles fazem mais mal que bem ao desviar a atenção da liderança, que tem a autoridade para provocar a verdadeira mudança5.

Em outubro de 2008, o Exército realizou uma Reunião de Cúpula de Treinamento em Prevenção do Assédio Sexual e Redução de Risco. Durante a reunião (cujos palestrantes convidados incluíam o secretário e o chefe do Estado-Maior do Exército), foi anunciada a nova campanha “I A.M. Strong” para ajudar a prevenir a agressão sexual no Exército. Por que o Exército precisaria tratar de questões de respeito por membros da força singular em 2008? Um dos sete valores do nosso Exército é o “respeito”. Temos certeza de que a maioria das pessoas no Exército sabe os sete valores de cor. Contudo, não basta decorá-los. Para que os valores do Exército tenham algum significado, é preciso internalizá-los, personificá-los e vivenciá-los. Podemos e devemos ser melhores que isso.

[…] carregar um cartão impresso com os valores do Exército ou ser capaz de recitá-los não é, nem de longe, compreender o que as palavras significam […]

Um poderoso exemplo da mentalidade de “slogan” dos nossos valores do Exército ocorreu em 2005, durante a corte marcial de um soldado acusado de empurrar um iraquiano de uma ponte sobre o rio Tigre. Durante a fase de sentença da corte marcial do soldado, o tenente-coronel Nate Sassaman, o comandante do batalhão, depôs que todos os integrantes do batalhão portavam um cartão “baseado nos valores do Exército” e “sabiam os valores do Exército — de trás para frente — e os seguiam rigorosamente na verdade”6. Contudo, carregar um cartão impresso com os valores do Exército ou ser capaz de recitá-los não é, nem de longe, compreender o que as palavras significam, acreditar nelas, internalizá-las e por fim, incorporar os valores nos próprios pensamentos, sentimentos, crenças e comportamentos.

Recentemente, durante entrevistas realizadas com 12 antigos comandantes de brigada que haviam comandado tropas no Iraque ou no Afeganistão, constatamos que havia frustração e insatisfação com a forma como o Exército atualmente conduz o treinamento e o ensino na área de desenvolvimento moral e ético. Os temas a seguir surgiram durante as entrevistas:

  • O Exército não faz um bom trabalho em desenvolver os soldados moral e eticamente.
  • A competência em caráter é tão importante quanto a competência tática para o futuro do nosso Exército.
  • Se tivesse de fazer tudo de novo, gastaria mais tempo desenvolvendo a competência em caráter dos meus soldados.
  • O treinamento de ética em sala de aula não é eficaz.

Cinco dos comandantes de brigada tiveram de substituir ou admoestar um chefe ou sargento de pelotão pelo abuso de detentos ou violação das regras de engajamento ou regras de escalada da Força. Um comandante de batalhão no Iraque, envolvido em uma investigação segundo o Artigo 15-6 do Código Uniforme de Justiça Militar dos EUA sobre as circunstâncias que levaram a um caso de sequestro e morte horrível, afirmou que seria preciso um “comandante especial” para impedir a ocorrência desse terrível incidente (por causa do clima depreciativo na unidade depois do amplamente divulgado estupro e assassinato de uma menina iraquiana). Quando lhe perguntaram se o Exército possuía esses “comandantes especiais”, ele respondeu: “sim, mas muito poucos apenas”7. Como cultivar e desenvolver esses soldados e líderes especiais para atuarem em um ambiente complexo e moralmente ambíguo que provavelmente persistirá por alguns anos ainda?

Treinamento – Ensino – Desenvolvimento

O problema principal é que o Exército não dispõe de um modelo para o desenvolvimento de caráter e liderança. Temos uma “lista de conferência” de treinamento fragmentada e improvisada, que busca ensinar caráter e ética aos soldados. Contamos com que os líderes ofereçam aos subordinados “treinamento no trabalho” em caráter sem um modelo explícito ou estratégia e sem muni-los de conhecimentos e ferramentas para realizar a tarefa. Nosso Exército precisa fazer melhor que isso.

O caráter deve ser desenvolvido, não ensinado. O treinamento resulta em uma habilidade, o ensino resulta em mais ou novos conhecimentos e o desenvolvimento resulta em uma pessoa transformada. Portanto, nosso Exército precisa desenvolver o caráter e, para se desenvolverem, as pessoas precisam sofrer uma transformação que altere fundamentalmente a forma como pensam, sentem e se comportam. Em suma, é preciso que haja uma mudança permanente. Por exemplo, podemos treinar (transferindo habilidades e competências) um líder em técnicas de acompanhamento (mentorship). Podemos ensinar (transferindo conhecimentos) a um líder o processo de desenvolvimento humano por trás dessas mesmas técnicas de acompanhamento. Por fim, podemos desenvolver (mudanças duradouras na identidade, perspectivas e sistema de criação de significado de uma pessoa) líderes ao criar uma identidade em que eles veem a si próprios como mentores e formadores de líderes8.

Um bom teste do caráter dos soldados é como eles se comportam quando algo dá errado. O caráter não se revela em um vazio.

Os soldados revelam o seu caráter pelo seu comportamento — no contexto do seu dia-a-dia e enquanto exibem sua competência. Um bom teste do caráter dos soldados é como eles se comportam quando algo dá errado. O caráter não se revela em um vazio. O conceito de “caráter” está visível no que fazemos o tempo todo (embora muitas vezes não pensemos nesses termos). Assim, nosso Exército precisa desenvolver moralmente líderes éticos para as contingências complexas.

Como as pessoas desenvolvem o caráter? As pesquisas dessa área mostram resultados variados. Um poderoso método pedagógico, proposto por Lee Knefelkemp, da Universidade Columbia, em Nova York, é fazer com que as pessoas saiam da sua zona de conforto — fazer com que se sintam incomodadas mediante debates sobre assuntos que elas não queiram discutir. Esse processo provoca uma dissonância cognitiva na mente das pessoas, que desafia suas crenças e leva à mudança.

O Exército precisa adotar uma visão holística do desenvolvimento de caráter. Um modelo comum utilizado para o desenvolvimento é descrito a seguir:

Nossa meta precisa ser a de intencionalmente criar oportunidades e estabelecer as condições para que os soldados entendam e internalizem as quatro etapas de desenvolvimento moral de James Rest9:

  • reconhecimento moral;
  • discernimento moral;
  • intenção moral;
  • ação moral.

Precisamos desenvolver soldados que sejam mais complexos intelectual e moralmente e que tenham a coragem moral de agir segundo suas crenças e valores. Isso é mais fácil falar do que fazer. Os programas de sucesso “começam com um modelo que inclui a dimensão cognitiva, afetiva e comportamental… e uma programação tão variada quanto o esclarecimento de valores, a discussão de dilemas morais, a dramatização e a resolução de conflitos”. Além disso, há indícios de que “o desenvolvimento moral possa continuar durante a idade adulta e que mudanças especialmente drásticas possam ocorrer em jovens adultos no contexto da educação profissional… O desenvolvimento moral e ético ocorre em vários contextos, tanto formais quanto informais”10.

[…] soldados sabem qual é o certo a fazer, mas (com frequência devido a um sentido distorcido de lealdade) não têm a coragem moral para de fato fazê-lo.

Nosso Exército precisa criar esses contextos formais e informais e praticar (por meio da dramatização e do ensaio) a intenção moral e a ação moral. A maior lacuna no modelo de Rest é a etapa entre as intenções morais e as ações morais. Muitas vezes, nossos soldados sabem qual é o certo a fazer, mas (com frequência devido a um sentido distorcido de lealdade) não têm a coragem moral para de fato fazê-lo. Há muitos exemplos dos nossos conflitos atuais (os espancamentos na base aérea de Bagram, Abu Ghraib, Operação Iron Triangle); os soldados sabiam qual era o certo a fazer, mas não o fizeram. Toner observa que esse problema fundamental tem uma solução: “Um importante problema com o ensino de ética é que ele não pode ser colocado em compartimentos perfeitos e convertido em resultados de aprendizagem sonoros e desejados… Não existe uma solução “mágica” — nenhuma bússola ética sempre segura. Devemos ensinar o raciocínio moral, e não apenas ‘valores centrais’ ou ‘listas de conferência éticas’”11.

Albert Bandura descreveu a escolha de não fazer nada (ou fazer vista grossa) como um ato de “desconexão moral”:

Em palavras simples, a “desconexão moral” é o que acontece com as pessoas quando elas recebem uma carga além da sua capacidade emocional e psicológica. Seus corpos, psiques, mentes e almas se desconectam dos eventos à sua volta e elas se tornam alheias, em um estado quase de dissociação. Se não for controlada, a pessoa “reinterpretará” ou utilizará uma lógica forçada para justificar comportamentos amorais12.

A presente era de conflito persistente sobrecarrega e continuará a sobrecarregar os soldados além de sua capacidade emocional e psicológica:

Para desenvolver o bom caráter, os alunos precisam de várias oportunidades diferentes para aplicar valores como responsabilidade e justiça em interações e discussões diárias… Por meio de repetidas experiências morais, os alunos… desenvolvem e praticam as habilidades morais e os hábitos comportamentais que compõem o aspecto da ação do caráter… em uma comunidade moral e que aprende, na qual todos compartilham da responsabilidade pelo ensino de caráter e buscam aderir aos mesmos valores centrais13.

Como se criam as experiências de desenvolvimento e se introduzem os novos conhecimentos para desenvolver os soldados moral e eticamente? Não é difícil, mas leva tempo, raciocínio e acompanhamento. Um ponto de partida é oferecer aos soldados experiências simuladas do mundo real, semelhantes às pistas de exercício tático, e acrescentar contextos e situações realistas a serem enfrentados; desenvolver problemas do mundo real com os quais eles precisem lidar; criar oportunidades para que os soldados e líderes pratiquem a tomada de decisões éticas e analisem cenários por uma série de prismas éticos (voltados para o resultado, voltados para regras/processos, voltados para valores). Ao expô-los a operações táticas, multitarefas e complexas, devemos incorporar variáveis moralmente intensas à equação. Devemos buscar fazer com que os soldados saiam de suas zonas de conforto, gerar ansiedade e exigir que tomem decisões difíceis que não tenham uma resposta necessariamente certa, mas que tenham consequências.

A orientação (coaching) e o acompanhamento (reflexão orientada) de qualidade devem ser contínuos durante todo o processo. Um líder, orientador ou mentor deve ajudar os alunos a encontrar significado em suas experiências e examinar suas percepções e decisões. Os líderes e orientadores também devem transmitir suas experiências sem julgar. Escolhemos a palavra “orientador”, e não professor ou conselheiro, porque a forma como se transmite a mensagem é importante. Para que alguém mude, é preciso que se desenvolva, e isso exige realismo, experiência e repetição. O ponto-chave é que o treinamento é ineficaz quando se tenta desenvolver as pessoas. “Só depois que o ‘líder em treinamento’ é obrigado a passar por um problema e resolvê-lo em primeira mão é que ele absorve a lição”14.

Essa ideia não é nova. A integração do treinamento, ensino e desenvolvimento em um modelo holístico de desenvolvimento de competência começa a infiltrar-se na cultura do Exército. Nosso Exército se movimenta lentamente em direção a um modelo de treinamento e desenvolvimento de liderança adaptável. Por causa da complexidade cada vez maior do campo de batalha moderno, os soldados e os líderes devem tomar decisões extremamente importantes em uma fração de segundo, que têm efeitos de segunda e de terceira ordem e, às vezes, estratégicos. Não devem ser treinados em habilidades específicas, mas desenvolvidos para possuir certas características e traços — os soldados e líderes terão de ser ágeis física, mental, social e emocionalmente — e possuir força de caráter e de competência. Todos os soldados precisam ter a capacidade de pensar de forma crítica e agir com determinação.

[…] para que a reflexão resulte em desenvolvimento, algu […] deve forçar os limites e facilitar uma experiência de reflexão que faça o indivíduo sair da sua zona de conforto.

Como mencionado, um aspecto importante do modelo de desenvolvimento é a reflexão. A reflexão é um conceito do qual muitas pessoas no Exército não gostam ou não têm conhecimento, mas é vital para o desenvolvimento do caráter. A reflexão implica que uma pessoa (ou grupo) pense, escreva e discuta em detalhe sobre uma experiência, ideia, valor ou novo conhecimento. Além disso, para que a reflexão resulte em desenvolvimento, alguém (um líder de grupo de combate, um sargento ou chefe de pelotão, um orientador ou um mentor) deve forçar os limites e facilitar uma experiência de reflexão que faça o indivíduo sair da sua zona de conforto.

Como se Apresenta em Ação

Analisemos dois componentes-chave do caráter: o respeito e a integridade. Temas como o respeito e a integridade não devem ser compartimentados nos cérebros dos soldados e líderes. O respeito e a integridade não são termos vagos e teóricos, sobre os quais devamos pensar e discutir ocasionalmente. Eles devem ser o que somos. Os soldados não podem compreender e demonstrar o respeito e a integridade em termos de estar “de serviço” ou “de folga”. O recente escândalo sexual envolvendo sargentos instrutores e recrutas é um exemplo dessa mentalidade “de serviço” em contraste com “de folga”.

Soldados do Gabinete de Relações Públicas ouvem um graduado na Estação de Segurança Conjunta Zafaraniya, leste de Bagdá, Iraque, 18 de abril de 2009. (Exército dos EUA, Sgt James Selesnick)

Por exemplo, um comandante de pelotão pode discutir a importância de um relatório preciso de contagem e aprestamento de recursos ao conduzir uma inspeção da seção de transportes. Um comandante de batalhão pode iniciar uma discussão de dez minutos sobre o respeito no final de uma reunião de treinamento. Um comandante de companhia pode discutir lealdades conflitantes com outros comandantes ou com soldados durante uma refeição. Durante um intervalo de “descanso” selecionado em um exercício de treinamento da missão, um sargento de pelotão pode inserir uma discussão de cinco minutos sobre a importância da precisão nos relatórios. Há inúmeras oportunidades como essas, e vale lembrar que, de uma perspectiva de desenvolvimento, “a omissão de discurso não é uma educação de valor neutro. Isso não existe. A omissão é um sinal poderoso, ainda que não intencional, de que essas questões não são importantes”15. Em consequência, quando nosso Exército, em qualquer canal, deixa de abordar implicações morais e éticas, uma mensagem clara é transmitida para o público: “No presente momento, isso não é tão importante”.

Um ponto de partida para implantar essa mudança pode ocorrer em nossas escolas se os instrutores simplesmente se perguntarem: “Quais são alguns dos desafios éticos que surgem em minha disciplina (gestão de manutenção, tática, primeiros socorros, comunicações, Inteligência, segurança de tiro, gestão de suprimento, operações de comboio, etc.)? O instrutor pode, então, inserir os desafios no currículo ou mediante técnicas pedagógicas. Por exemplo, uma aula sobre como realizar verificações e serviços de manutenção preventiva em um veículo pode incluir uma discussão sobre a importância de relatórios precisos sobre o aprestamento do material bélico. O instrutor talvez diga: “seus colegas soldados podem ser colocados em risco se você informar que uma viatura está plenamente habilitada para a missão quando, na verdade, não está”. Na solução de longo prazo, especialistas no campo de desenvolvimento de caráter auxiliariam o TRADOC e nossas escolas a integrar lições de caráter e competência no currículo.

Os indivíduos mais aptos a modificar essa cultura no Exército são os selecionados para liderar os soldados nos escalões de companhia, batalhão e brigada — os comandantes e os sargentos-ajudantes. Esses líderes-chave têm a influência mais direta sobre os soldados e líderes subordinados e devem liderar o caminho na transformação da cultura (e ambiente) do Exército. Também estabelecem a cultura e o ambiente de suas unidades de modo que os soldados façam e se sintam parte da equipe. Os líderes-chave de uma organização têm mais êxito em mudar sua cultura16.

Podemos e devemos tornar assuntos como honestidade e integridade parte comum da conversa nas seções de transporte, bases avançadas de operações, áreas de treinamento, postos de comando de comandantes de subunidades e praças de esporte.

Portanto, os comandantes e subtenentes em todos os escalões devem desafiar uns aos outros e desafiar seus soldados a ajudar a mudar nossa cultura. Essa não é uma tarefa intensiva em recursos. Podemos e devemos tornar assuntos como honestidade e integridade parte comum da conversa nas seções de transporte, bases avançadas de operações, áreas de treinamento, postos de comando de comandantes de subunidades e praças de esporte. Devemos falar abertamente e à vontade sobre o que essas palavras significam. Devemos ter diálogos abertos e francos sobre o tema do respeito (Em que consiste? Em que não consiste?). Essas discussões não precisam ser aulas formais, constantes de um cronograma de treinamento. Desenvolver as pessoas para serem mais complexas moral e intelectualmente (em vez de treiná-las ou ensinar-lhes os assuntos) exige tirá-las de suas zonas de conforto e falar com elas, e não a elas.

Os comandantes e outros líderes devem deixar que jovens soldados liderem discussões nessas áreas. Um comandante de pelotão pode solicitar que um especialista dê um exemplo de um conflito entre lealdade e integridade. Dois sargentos de pelotão podem discutir o que não constitui o respeito na frente de seus pelotões. Um grupo de soldados pode atuar em uma dramatização de exemplos de honestidade. A interação entre colegas quanto a esses temas difíceis e incômodos é uma das técnicas de desenvolvimento mais eficazes. Somos limitados nessa área apenas pela nossa imaginação e não precisamos reservar um período de instrução de uma hora para iniciar essas discussões.

Garantir que os soldados de uma unidade verdadeiramente tenham caráter (e sejam competentes) é uma responsabilidade de liderança e comando em seu nível mais básico. Como a maioria dos “problemas” no Exército, esse é simplesmente um problema de liderança. Historicamente, “os comandantes são responsáveis por tudo que uma unidade faz ou deixa de fazer”. Esse é um conceito simples, mas poderoso. Curiosamente, em termos de aceitar responsabilidade pelo ambiente e comportamento de “caráter” de uma unidade, podemos aprender algo dos nossos companheiros de armas da Marinha. Se nosso Exército adotasse o conceito da Marinha de que “se um navio encalha, o comandante é o responsável”, criaria um paradigma diferente nas mentes dos comandantes. Os comandantes compreenderão que, se deixarem de desenvolver o caráter de seus soldados de forma adequada e plena, estabelecerão condições para o fracasso.

Soldados americanos e policiais de fronteira afegãos caminham ao longo de uma trilha de montanha durante uma patrulha na Província de Paktiya , no Afeganistão, 13 de outubro de 2009. (Exército dos EUA, Sgt Andrew Smith)

Como Mudar uma Cultura

A mudança que defendemos seria uma transformação revolucionária na cultura do Exército, não uma transformação gradual ou metódica. Para que ela seja eficaz, os líderes dos escalões mais elevados da organização teriam de exigi-la. Esses líderes precisam criar, direcionar e impulsionar essa mudança para assegurar que ela afete todas as facetas dos sistemas de desenvolvimento e ensino de liderança do Exército17. O atual status quo separa o desenvolvimento de competência do baseado em caráter. O novo paradigma sempre desenvolverá a competência e o caráter simultaneamente — aumentando, assim, o tempo gasto no desenvolvimento do caráter.

Depois da mudança cultural, a competência e o caráter passarão a fazer parte de tudo o que fizermos. Como um guia para impulsionar essa mudança, propomos que se utilizem os oito passos de John Kotter para mudar a cultura de uma organização:

  1. estabelecer um sentido de urgência (de cima para baixo e de baixo para cima);
  2. criar uma coalizão orientadora (para iniciar e continuar o processo);
  3. desenvolver uma visão e estratégia para integrar o caráter e a competência;
  4. comunicar a visão de mudança utilizando os líderes mais antigos;
  5. possibilitar a ação de base ampla ao remover obstáculos à mudança;
  6. gerar ganhos de curto prazo integrando o ensino de caráter em nossos currículos;
  7. consolidar os ganhos e produzir mais mudança (integrando o ensino de caráter em nossos canais de treinamento);
  8. fixar novas abordagens na cultura desafiando outros na organização a falar sobre a mudança18.

Haverá uma curva de aprendizado pronunciada para os instrutores e líderes sobre como criar e facilitar essas conversas incômodas. Entretanto, boa parte da estratégia para implantar essa mudança é “simplesmente fazê-lo”. Precisamos estabelecer as condições e criar oportunidades para os soldados pensarem sobre a forma como entendem questões difíceis, como o assassinato, a tortura, o estupro, e como elas são relacionadas com detentos e estrangeiros. Os soldados precisam testar e desafiar seus pensamentos, crenças e valores. Esse simples primeiro passo será, na realidade, um enorme passo rumo a tratar da mudança cultural que propomos.

Se o Exército decidir realizar essa mudança cultural, economizará na verdade tempo e dinheiro. A economia líquida ocorrerá porque os soldados não terão mais de entrar em salas de aula ou auditórios para assistirem a treinamentos referentes a ética. Nosso Exército se transformará em uma profissão em que o treinamento, ensino e desenvolvimento de caráter e competência ocorrerão simultaneamente — e o resultado será soldados que entendem e internalizam o que significa ser um soldado americano. Por fim, nosso Exército e nossa nação se beneficiarão de tal mudança. É a coisa certa a fazer e agora é a hora de fazê-lo.


Referências

  1. TONER, James. “Mistakes in Teaching Ethics”, Airpower Journal (Summer 1998).
  2. GOLDMAN, Cel (reformado) Darryl. “The Wrong Road to Character Development”, Military Review (January-February 1998).
  3. MOYER, Don. “Training Daze”, Harvard Business Review (October 2008): p. 144.
  4. BEBEAU, Muriel; REST, James; NARVAEZ, Darcia. “Beyond the Promise: A Perspective on Research in Moral Education”, Educational Researcher (May 1999).
  5. GOLDMAN.
  6. SASSAMAN, Nathan; Layden, Joe. Warrior King: The Triumph and Betrayal of an American Commander in Iraq (New York: St. Martin’s Press, 2008), p. 289.
  7. Entrevista pessoal, outubro de 2008.
  8. HANNAH, Cel Sean. Leader and Leadership Development: Concepts and Processes, apresentação (2008).
  9. REST, James. Development in Judging Moral Issues (Minneapolis, Minnesota: University of California Press, 1979).
  10. PIPER, Thomas; GENTILE, Mary; PARKS, Sharon Daloz. Can Ethics Be Taught? Perspectives, Challenges and Approaches at the Harvard Business School (Boston, Massachusetts: Harvard Business School, 2007), p. 13.
  11. TONER, p. 5.
  12. BANDURA, Albert. “Moral Disengagement in the Perpetration of Inhumanities”, Personality and Social Psychology Review 3, no. 3, (1999), pp. 193–209; JAMES, Cel (reformado) Larry; FREEMAN, Gregory. Fixing Hell: An Army Psychologist Confronts Abu Ghraib (New York: Grand Central Publishing, 2008), p. 149.
  13. HUNTER, James. The Death of Character: Moral Education in an Age Without Good or Evil (New York: Basic Books, 2000).
  14. VANDERGRIFF, Don. Raising the Bar, Creating and Nurturing Adaptability to Deal with the Changing Face of War (Washington, DC: Center for Defense Information, December 2006).
  15. PIPER; GENTILE; PARKS, p. 6.
  16. SHEIN, Edgar. Organization Culture, and Leadership, 2d ed. (San Francisco, CA: Josey Bass, 1992).
  17. BURKE, Warner. Organizational Development: A Process of Learning and Changing, 2d ed. (New York: Addison-Wesley Publishing Co., 1992).
  18. KOTTER, John. A Force for Change: How Leadership Differs from Management (New York: Free Press, 1990).

O Ten Coronel Joe Doty, Ph.D., Exército dos EUA, é vice-diretor do Centro de Excelência de Ética Militar Profissional, na Academia Militar dos Estados Unidos. Comandou, anteriormente, o 1º Batalhão, 27º Regimento de Artilharia de Campanha (Sistema de Lançamento Múltiplo de Foguetes), V Corpo de Artilharia, Exército dos EUA na Europa.

O Maj Walter Sowden é o subchefe de logística do 807° Comando de Apoio de Desdobramento Médico, Posto de Comando Operacional, Seagoville, TX. Anteriormente, foi diretor de pesquisa e operações do Centro de Excelência de Ética Militar Profissional na Academia Militar dos Estados Unidos. É bacharel pela South Dakota State University e mestre pela Columbia University. Atuou como comandante de companhia na 1ª Divisão de Cavalaria durante a Operação Iraqi Freedom II.

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