Desconstruindo o Nosso Futuro de Idade das Trevas
P. Michael Phillips
Artigo publicado na revista Parameters, Edição do Verão de 2009.
O termo “Idade Média” é infeliz. Não foi inventado até muito depois do período. Os que viveram durante a Idade Média não o teriam reconhecido. Não sabiam que viviam em uma época intermediária. Pensavam, com razão, que eram a última conquista no tempo.
—Morris Bishop, 19681
Para muitos observadores, quase duas décadas depois do colapso da União Soviética, o futuro do mundo pós-Guerra Fria continua sendo assustador. Em um mundo cada vez mais multipolar, os rápidos avanços da tecnologia e da globalização fortaleceram, de forma perigosa, atores não estatais, que competem por legitimidade com os Estados e minam antigos conceitos de autonomia e soberania nacional. A comunidade dos Estados-Nação, presa em sua própria inércia burocrática e capacidade decrescente, não pode acompanhar o ritmo desses ágeis malfeitores. Um número cada vez maior de Estados terceiriza suas responsabilidades, transferindo-as para entidades comerciais, erodindo ainda mais o seu monopólio sobre o poder2. Em tal ambiente, pode parecer que a crise é iminente, que os Estados poderosos se enfraquecerão e que os Estados enfraquecidos se desintegrarão. O sistema westfaliano se desmoronará, e o mundo cairá em uma Nova Idade das Trevas, prenunciada pela fragmentação da autoridade política, concorrência de jurisdições, fluidez de limites territoriais, marginalização de grupos, lealdades divididas, áreas interditadas e disputas de direitos de propriedade3. Entretanto, esse futuro draconiano pode não se tornar uma realidade.
As crises costumam gerar alertas apocalípticos, e esse não é o primeiro período da História Moderna em que observadores empregam, de forma equivocada, temas históricos como a Idade das Trevas para descrever mudanças preocupantes na política mundial4. A ascensão de Adolf Hitler no período entre-guerras e o resultado imaginado de uma guerra nuclear com a União Soviética foram, muitas vezes, descritos em termos comparáveis5. Caso tivesse sobrevivido à Batalha de Hastings, supõe-se que até o Rei Haroldo II teria visto a conquista normanda da Bretanha como um retrocesso de 66 anos. Tendências sociais e ambientais inquietantes devem ser motivo de preocupação. Os padrões do terrorismo mundial, a competição por recursos cada vez mais escassos e as crescentes percepções de desigualdade, entre outras tendências desanimadoras, devem estimular reavaliações da política e da estratégia. Contudo, o que ora testemunhamos é a dissolução do sistema internacional como o conhecemos — e uma volta ao conceito poético de “escuridão e densas trevas” de Petrarca — ou, em vez disso, somos apenas distraídos e enganados pelo barulhento estertor da morte do estimado modelo que buscou explicar tal sistema?6
Este artigo sugere que o sistema de Estados westfalianos não está em declínio, mas que ele nunca passou de uma alegoria utópica, que exemplificava a experiência americana. Como tal, a tese da Idade das Trevas não se refere, na verdade, ao declínio do Estado soberano e ao mergulho do mundo na anarquia. É, em vez disso, uma reação irracional ao declínio da hegemonia americana, com uma ênfase ingênua no poder dos atores não estatais de competir com Estados-Nação. A análise conclui que, como o atual paradigma confere mais valor a ameaças exageradas do que a oportunidades, nosso maior perigo não é o ambiente mundial em mutação em que vivemos, mas a nossa reação a ele.
Nenhum “Portal Majestoso”
Há mais de uma década, os cientistas políticos propõem que o ideal do Estado westfaliano — uma entidade territorial, soberana e juridicamente igual — assemelha-se mais a uma descrição abreviada acadêmica do que a uma realidade empírica7. Entretanto, os analistas de segurança invocam rotineiramente o paradigma westfaliano para confirmar suas observações sobre o caos mundial e as previsões de um futuro terrível8.
Esse paradigma persiste porque, durante o século passado, tornou-se um princípio orientador na visão de mundo dos Estados Unidos, produto de interpretações utópicas das relações de poder. Para entender por que é esse o caso, uma breve análise da gênese do campo de estudo das Relações Internacionais (RI) pode mostrar-se útil. Surgido da área da história diplomática, o campo de RI se firmou principalmente nos Estados Unidos, no período posterior à Primeira Guerra Mundial, tanto em função da repugnância à escala da matança naquele conflito quanto para investigar as causas da guerra e da paz9. Em vez de adotar um marco analítico rigoroso, os primeiros estudiosos de RI adotaram uma preferência normativa pelo direito internacional, organizações internacionais e segurança coletiva para opor-se a teorias de equilíbrio de poder da política mundial, muitas vezes com o intuito de definir o papel da nova Liga das Nações10. Retratando os Estados como atores racionais cujas interações eram constrangidas pela lei e pela convenção, os profissionais avaliaram políticas nacionais em relação a regras de conduta idealistas e condenaram as declarações de interesse nacional e a política de poder em favor de padrões mais esclarecidos11. Em meados do século XX, os pensadores americanos identificaram a Paz de Westfália — o termo comum para os tratados de Münster e Osnabruck, de 1648, que puseram fim à Guerra dos Trinta Anos — como “o portal majestoso que conduz do velho ao novo mundo”, no qual os Estados são territoriais, soberanos e juridicamente iguais12. A referência ao velho e ao novo mundo parece ser intencional; para muitos americanos, o velho mundo da Europa era sinônimo de expressões cínicas do poder nu, enquanto os Estados Unidos — um novo mundo nascido no quente crepúsculo do Iluminismo — refletiam a razão e o comportamento racional. Da mesma forma, os Estados Unidos, um Estado poderoso desde a sua concepção devido, em grande parte, a um acidente da geografia e a um ambiente físico abundante, conformavam-se estritamente com o modelo westfaliano13. Em suma, o modelo reforçou a experiência essencial americana, em vez das realidades da política mundial.
Os primeiros estudiosos de RI afirmaram que os tratados de 1648 constituíam a origem conceitual da soberania nacional e da autodeterminação. Por extensão, essa afirmação forneceu não só um útil histórico de linhagem, mas também conferiu uma legitimidade adicional a instituições internacionais em seu papel de administrar assuntos mundiais. Contudo, apropriar esses tratados para tais fins maiores foi criar uma interpretação forçada porque, salvo o esclarecimento de alguns direitos religiosos, eles só serviram para validar e aperfeiçoar um esquema de relações mútuas entre atores semiautônomos que já existiam14. Andreas Osiander observa que, mesmo antes da guerra, o imperador Habsburgo exercia controle direto sobre as terras hereditárias de sua família e que, segundo o conceito de jurisdição territorial, os príncipes subordinados do reino gozavam de controle sobre as suas propriedades individuais15. Depois da assinatura do tratado, os príncipes alemães da Casa dos Habsburgos não se tornaram mais aptos do que o eram antes da guerra para celebrar acordos com potências estrangeiras ou para separar-se do império, e essas limitações eram entendidas e plenamente reconhecidas pelas potências independentes da Europa16. De fato, a Paz de Westfália não se manifesta sobre a questão de soberania e seus corolários; assim, os tratados representavam um “portal majestoso” para um novo mundo da lei e da razão, da mesma forma que o guarda-roupa mágico de C. S. Lewis é uma entrada para a terra de Nárnia, onde os animais falam17.
[…] a premissa subjacente ao modelo — que o mundo é composto de Estados soberanos e juridicamente iguais — nunca foi absoluta.
Mesmo que aceitássemos a validade da ordem westfaliana, a premissa subjacente ao modelo — que o mundo é composto de Estados soberanos e juridicamente iguais — nunca foi absoluta. A soberania é definida de forma diferente conforme o nível de análise. Alguns analistas a descrevem como o grau de controle de que as entidades públicas desfrutam dentro de suas fronteiras ou o grau de controle sobre os movimentos entre fronteiras. Para outros, é a liberdade de celebrar tratados ou exercer a autonomia territorial. Embora sejam distintas, essas definições não se excluem mutuamente18. Além disso, esses conceitos de soberania não são observados universalmente. Steven Krasner observa que as convenções, os contratos, a coação e a imposição são padrões de conduta duradouros no sistema internacional19. Os Estados podem celebrar acordos internacionais que limitem sua própria autonomia. Da mesma forma, interferir nos assuntos internos de outro Estado continua sendo uma opção de política viável porque, apesar da infinidade de organizações internacionais modernas, nenhuma estrutura de autoridade abrangente pode opor-se à intervenção20. A invasão do Iraque de Saddam Hussein pelos Estados Unidos e a intervenção mais recente da Ossétia do Sul, na Geórgia, pela Rússia são apenas dois exemplos de muitos, em que as percepções de um Estado mais poderoso quanto aos seus interesses vitais sobrepujaram os direitos soberanos de uma nação mais fraca. Assim, a despeito da preferência normativa do modelo westfaliano, os Estados não são criados iguais, e a observação de Tucídides sobre a natureza do poder permanece válida21.
Não sendo o Sistema de Westfália, Qual é a Alternativa?
Se a soberania é ilusória, resta a pergunta óbvia: o que é um Estado exatamente? O antigo conceito alemão de jurisdição territorial é um ponto de partida tão bom quanto qualquer outro; consagra a legitimidade de criar e aplicar regras dentro de um dado limite territorial. No sentido do Estado, a legitimidade é conferida por dois processos: a capacidade de qualquer Estado de defender a sua jurisdição alegada e a anuência de outros Estados em respeitá-la. O fato histórico de que Estados fortes têm mais sucesso que Estados mais fracos em garantir sua sobrevivência reforça essa relação.
Um terceiro componente — até que ponto uma população aceita a legitimidade do Estado de governar — não é necessariamente essencial à existência dele; a história está cheia de exemplos de Estados que governam de forma autocrática e com relativo sucesso sem o apoio público. Contudo, no caso de Estados que pendem para o modelo de governança democrática preferido pelos EUA, a força e a capacidade de sobrevivência dependem muito de que o povo enxergue o seu governo como sendo legítimo. Em seu estudo sobre aldeias e comunas suíças, Randolph Head concluiu que “toda entidade política viável deve chegar a decisões legítimas — decisões aceitas por uma maioria dos membros — e distribuir benefícios e encargos de forma previsível”22. O falecido Charles Tilly sugeriu que o estabelecimento de Estados democráticos evoluiu mediante ampla negociação, que tornou os governantes dependentes da conformidade geral dos cidadãos e da instituição de “direitos e obrigações que constituem uma consulta que obriga ambas as partes”23. Uma democracia prospera quando as redes de confiança resultantes se integram à política pública, isolam a política pública de desigualdades categóricas e eliminam centros de poder coercitivo alternativos dentro do Estado24.
A comunidade dos Estados-Nação, presa em sua própria inércia burocrática e capacidade decrescente, não pode acompanhar o ritmo desses ágeis malfeitores.
Isso introduz o essencial abismo que existe no mundo entre Estados fortes e fracos. Os Estados fortes no sistema internacional parecem autoevidentes. Quer sejam denominados “faixa do norte” e “Ocidente” quer “mundo desenvolvido”, geralmente ligamos as nações desenvolvidas a Estados fortes, que detêm o controle sobre a maior parte dos mercados monetários do mundo. Além do acesso ao capital, esses Estados possuem força militar suficiente para defender suas reivindicações geopolíticas, quer seja individualmente quer em acordo com outros Estados. Possuindo extensões territoriais viáveis e sociedades forjadas pelo longo processo de interação social, esses Estados fortes são geralmente mais adaptáveis diante de mudanças no sistema internacional.
Os Estados não são criados iguais, embora muitos sejam, de fato, criados. Há quase duas décadas, Robert Jackson cunhou o termo “quase-Estado” para descrever as antigas colônias que receberam a independência da metrópole e o reconhecimento das Nações Unidas como Estados soberanos sem ter de demonstrar as características institucionais geralmente aceitas pelo Direito Internacional25. Jackson observou que, embora a comunidade internacional os reconhecesse como parceiros iguais, esses novos Estados mal podiam sustentar suas populações. Não surpreende, portanto, que, dos 141 Estados denominados “fracos” em um estudo de 2008 da Brookings Institution, os 28 Estados que compõem o quinto inferior eram todos antigas colônias que receberam a independência depois da Segunda Guerra Mundial26.
O Estado conforme descrito neste artigo difere muito do ideal imaginado no paradigma westfaliano. Os Estados não desfrutam de uma soberania irrestrita em toda parte. Nem são iguais. De fato, a soberania de um grande número de Estados no sistema internacional é meramente atributiva27. Como essas condições imperfeitas existem desde muito antes de 1648, pode ser mais útil pensar no caos observado no sistema internacional como a condição natural, em vez de um mergulho na desordem. Se o sistema não estiver se desintegrando, os chamados atores não estatais são tão significativos no longo prazo quanto parecem ser no presente?
Atores Não Estatais: os Elementos Imprevisíveis da Idade das Trevas
No início dos anos 70, os cientistas políticos conceituaram o ator não estatal para preencher lacunas nas teorias da política internacional centradas no Estado28. Esses estudos iniciais observaram que os atores não estatais e suas atividades às vezes tiveram um impacto na tomada de decisões de Estados, mas os estudiosos não chegaram a sugerir que eles detivessem um poder significativo. Em poucas palavras, um ator não estatal é qualquer comunidade organizada politicamente que não seja um governo. Como essa definição poderia, em princípio, aplicar-se a praticamente todos os grupos não governamentais, desde os terroristas internacionais até as ligas de proteção de animais domésticos, é melhor examinar apenas os que atuam na esfera internacional, o domínio do Estado29.
Os analistas de segurança muitas vezes retratam atores não estatais como rivais astutos, que ameaçam enfraquecer o monopólio do Estado sobre o emprego legítimo da força e a imposição de sua ordem social30. Essa rivalidade é normalmente expressa de duas formas. Primeiro, os atores não estatais acumulam a legitimidade gradualmente por meio da transferência voluntária de alguns poderes por parte do Estado. Atuando apenas de forma complementar a ele inicialmente, os atores não estatais usurpam aos poucos as prerrogativas estatais, minando a liberdade de ação do Estado. Entre os atores não estatais que empregam esses meios estão as empresas militares privadas, empresas transnacionais e organizações não governamentais, podendo ser chamadas de atores não estatais não hostis31. Por uma segunda rota mais aberta, outros tipos de ator não estatal podem enfrentar os Estados em uma disputa pelo poder. Entre esses atores estão as milícias privadas, os terroristas mundiais, os insurgentes e os cartéis de drogas, podendo ser denominados atores não estatais hostis. Quando aliados com as forças de alta tecnologia da globalização, os atores não estatais de ambos os tipos são vistos como mais ágeis, inovadores e empreendedores que o governo estatal, sendo, portanto, capazes de explorar brechas no sistema internacional.
Essa visão da ameaça apresentada pelos atores não estatais é falha por três motivos. Primeiro, ela trata atores não estatais como novos fenômenos, ignorando o fato histórico de que esses grupos são um componente antigo e duradouro do terreno humano do sistema internacional. Segundo, ela supõe falsamente que os Estados sejam estáticos, moribundos e sem iniciativa e que, como um provável perdedor em uma gigante luta de judô mundial, os atores não estatais podem facilmente explorar o peso de um Estado contra o governo. Terceiro, e mais importante, essa visão eleva, equivocadamente, os atores não estatais hostis à categoria de concorrentes do Estado ao descontar as vantagens que eles derivam de seus próprios patrocinadores estatais.
Atores Não Estatais Não Hostis e o Estado: uma Relação Simbiótica
Muito antes da abertura do “portal majestoso” de Westfália, os Estados coexistiam com atores não estatais e os empregavam para administrar de forma econômica a defesa e a promoção de seus interesses. Por exemplo, as empresas militares privadas de hoje derivam dos bandos mercenários alemães Landsknecht do século XVI e dos condottieri italianos. Os primeiros governantes ingleses e franceses preferiam utilizar milícias locais treinadas para travar suas guerras. Mesmo assim, ambos utilizavam companhias mercenárias estrangeiras rotineiramente para preencher seu contingente ou compensar a fraqueza relativa de suas próprias forças, embora seus contemporâneos considerassem o emprego desses contratados potencialmente perigoso32. O surgimento dos exércitos permanentes modernos não eliminou a necessidade eventual de contratar forças. É de conhecimento geral que os britânicos contrataram milhares de mercenários de Estados alemães como Hesse-Kassel, os chamados Hessians, para complementar rapidamente as suas forças que lutavam contra os revolucionários na América do Norte. Esses revolucionários seguiram o exemplo. O Congresso Continental Americano não só contratou corsários para ameaçar o comércio do adversário, como os criadores da Constituição da nova República também conferiram ao Congresso o poder de conceder cartas de corso, caso a nação precisasse contratar uma marinha mais uma vez33. Nos tempos modernos, os Estados integraram com sucesso as empresas militares privadas em seus planos de engajamento de segurança, liberando combatentes comuns para desempenhar funções essenciais. Essa prática não se restringe aos Estados fortes. Em seu estudo das forças de segurança privadas nos conflitos civis da África Ocidental, Herbert Howe concluiu que as firmas de segurança privadas podem estabilizar os Estados fracos ao fornecer uma força treinada e profissional a um governo em dificuldades34.
As empresas transnacionais de hoje também têm raízes profundas, que remontam às companhias de comércio de capital privado do século XVII. Talvez a mais famosa de todas, a Companhia Britânica das Índias Orientais, estabeleceu uma forte relação simbiótica com o governo britânico, que contribuiu para a estabilidade de ambos os atores, ao mesmo tempo em que lubrificou o motor econômico do Império35. Embora Londres acabasse dissolvendo a companhia, a concessão de preferências ou monopólios comerciais a firmas privadas era um meio econômico geralmente aceito de desenvolver as posses coloniais, que perdurou até o início do século XX. Por exemplo, no estatuto de 1890 concedido à Companhia Britânica da África do Sul (BSACo), de Cecil Rhodes, a coroa reconhecia “…a existência de uma poderosa Companhia Britânica, controlada por… nossos súditos…”, capacitada a promover o bom governo, a suprimir o comércio de escravos, a preservar a paz e a ordem e a manter uma força policial36. Outras potências coloniais, como a Alemanha e Portugal, seguiram o exemplo, estabelecendo o que consistia em contratos comerciais para a administração das posses coloniais de cada nação37.
As atividades dessas empresas transnacionais iniciais nem sempre se restringiam estritamente a uma dada fronteira colonial. As companhias de comércio podiam ser substitutos úteis para atingir os objetivos da política estatal. Por exemplo, em 1895, Rhodes organizou uma invasão da república independente adjacente da África do Sul, no Transvaal, supostamente para liberar os mineiros de ouro estrangeiros da opressão dos bôeres. O governo britânico de Joseph Chamberlain não apoiou oficialmente o que ficaria conhecido como Jameson Raid (Ataque de Jameson), mas quando detalhes sobre o planejamento da incursão chegaram ao conhecimento de Londres, o governo britânico fez muito pouco para impedi-la porque a intenção de Rhodes estava alinhada com o desejo da Grã-Bretanha de efetuar uma mudança de regime no Transvaal38.
De fato, terceirizar as responsabilidades do Estado não é só diversão, porque mesmo que não sejam hostis aos interesses do Estado, os atores não estatais continuam sendo potencialmente imprevisíveis. As unidades mercenárias antigas eram conhecidas por jogar os dois lados contra o meio, e suas descendentes, as empresas militares privadas modernas, podem causar grande embaraço ao seu respectivo Estado39. Em 1998, as atividades de contrabando de armas de uma firma britânica, a Sandline International, quase acabaram com a carreira de um secretário de relações exteriores da Grã-Bretanha e, em 2007, a empresa de segurança americana Blackwater Worldwide foi acusada de matar civis iraquianos de forma indiscriminada40. O mesmo se aplica a proto-empresas transnacionais. Em 1891, uma invasão não autorizada da África Oriental portuguesa pela Companhia Britânica da África do Sul, para obter um porto de águas profundas para a Rodésia, que não tinha acesso ao mar, ameaçou as relações anglo-portuguesas. O fracasso do Ataque de Jameson, em 1896, minou a confiança no governo de Chamberlain41.
Dado o comportamento potencialmente imprevisível de agentes privados, empregá-los para conduzir questões relativas ao regime pode parecer uma transferência perigosa de autoridade. Na realidade, a capacidade de atores não estatais não hostis de enfraquecer o controle estatal, e quanto mais ameaçar a existência do Estado, é questionável porque, nesses relacionamentos, os Estados, quer sejam fortes quer fracos, geralmente mantêm a vantagem para moldar oportunidades em seu próprio favor. A retirada de potenciais contratos com o governo, a alteração de estruturas tributárias vantajosas, a revogação de licenças de funcionamento, a ameaça de ação judicial ou a suspensão de transações financeiras são apenas algumas das medidas que os Estados podem tomar para domar o comportamento indisciplinado de atores não estatais. Os Estados também podem utilizar acordos diplomáticos com outros Estados como um antídoto clássico à ação indisciplinada nociva. Por exemplo, o empreendimento para a busca de um porto pela Companhia Britânica da África do Sul levou Londres a firmar um acordo de amizade com Portugal tanto como uma medida de geração de confiança quanto como um controle contra os projetos não autorizados da companhia42.
Ao empregarem atores não estatais não hostis, os Estados não transferem poder. Em vez disso, eles delegam poderes a atores não estatais, conferindo-lhes certas responsabilidades como uma medida de economia para ampliar a abrangência do controle estatal. Em essência, uma vez empregados, esses atores não estatais se tornam simbiontes ou agentes do Estado, e seu rótulo de agente não estatal passa a não corresponder à realidade. Mesmo que alguns atores não estatais busquem competir com os seus patrocinadores estatais, todos os tipos de Estado desfrutam de uma verdadeira gama de mecanismos de imposição para reafirmar sua autoridade e primazia. Embora a tática dos seus “primos” terroristas seja muito mais arrojada e letal, uma dinâmica semelhante se aplica aos atores não estatais hostis.
Atores Não Estatais Hostis: o Inimigo do meu Inimigo
Determinados, violentos, conectados e com conhecimentos de tecnologia, para os analistas de segurança, os atores não estatais hostis modernos são os verdadeiros vilões no cenário da Idade das Trevas. Superficialmente, esse tipo de ameaça por atores não estatais parece ser invencível porque, na qualidade de atores transnacionais, eles atuam fora das normas estabelecidas do sistema internacional. Da mesma forma que seus “primos” não hostis, porém, descobrimos, muitas vezes, que longe de serem concorrentes não estatais com poder excessivo, o patrocínio do Estado molda ou garante sua viabilidade e sucesso.
Os atores não estatais hostis — que carecem do patrocínio do Estado — existem há séculos. Talvez os arquétipos mais contundentes sejam os diversos movimentos anarquistas do final da era vitoriana. Durante os aproximadamente 30 anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, uma onda inédita de violência terrorista se espalhou por toda a Europa. Os anarquistas assassinaram não menos que oito chefes de Estado e cometeram atentados contra muitos outros. A invenção da dinamite por Alfred Nobel, em 1862, a “pólvora gigante”, “democratizou os meios da violência”, e os chamados dinamiteiros bombardearam teatros, restaurantes e instituições públicas aparentemente à vontade43. De 1892 a 1894, 11 bombas explodiram em Paris e, em 1893, cerca de 20 barceloneses foram mortos quando uma bomba explodiu em um teatro na cidade44. Nem os Estados Unidos ficaram imunes; bombas explodiram em delegacias e, em 1901, um anarquista baleou o presidente William McKinley. Enquanto a maioria dos “Propagandistas do Ato Cometido” concentrou seus esforços na classe dominante, a classe média em geral não ficou imune. Vistos como cúmplices dos excessos do Estado, centenas de cidadãos comuns se juntaram aos “cadáveres ilustres” de líderes políticos45.
Embora seus ataques terroristas fossem disseminados, não havia uma doutrina anarquista universal que motivasse a violência além de um desejo geralmente comum de substituir o poder político com a autoridade natural46. Apesar dos esforços internacionais de identificar conexões entres os transgressores, provas de uma conspiração coordenada não se materializaram47. De fato, esses anarquistas eram os atores não estatais hostis típicos, sendo contrários ao Estado e carecendo de seu apoio. Ironicamente, a desunião e a desorganização anarquista prevaleceram sobre o seu acesso à então tecnologia avançada de altos explosivos. Sua falta de vontade ou capacidade de atrair e utilizar o poder de um patrocinador os tornou incapazes de atingir suas metas em um sistema regido por Estados poderosos.
Nos primeiros anos do século XX, a violência anarquista entrou em declínio. Uma virada em uma longa depressão mundial, que aliviou a pobreza dos trabalhadores, e a ascensão de movimentos políticos socialistas que buscavam a mudança de formas mais tradicionais foram, até certo ponto, responsáveis pela redução48. Contudo, mesmo enquanto os primeiros anarquistas se afastavam do terrorismo, uma longa sucessão de grupos dissidentes — dos fenianos irlandeses e comunistas aos jihadistas de hoje — adotou seus métodos.
A “Propaganda do Ato Cometido” sem dúvida liga esses dissidentes modernos aos antigos anarquistas, mas qualquer semelhança não vai além porque a maioria dos atores não estatais hostis que nos interessam obtém apoio significativo de patrocinadores estatais. Os Estados há muito engajam atores não estatais hostis como extensões de sua política externa. Por exemplo, os Estados podem apoiar grupos insurgentes armados como um meio de enfraquecer os rivais a partir de seu interior. No século XVIII, o apoio dado pela França dos Bourbons aos rebeldes jacobitas escoceses visava a desviar o poder britânico, da mesma forma que o auxílio prestado pela Alemanha imperial aos separatistas irlandeses e indianos antes e durante a Primeira Guerra Mundial49. Os Estados também podem utilizar atores não estatais hostis como representantes em um esforço indireto de competir com seus rivais quando o confronto direto seja custoso demais. A Guerra Fria assistiu a usos múltiplos de atores não estatais hostis por ambos os lados, incluindo o apoio de Washington aos combatentes mujahidin anti-soviéticos no Afeganistão e o apoio de Moscou a grupos terroristas europeus e africanos50. Por fim, os Estados podem utilizar atores não estatais como multiplicadores assimétricos do poder estatal em disputas desequilibradas. O apoio do Talibã aos terroristas da Al-Qaeda contra os Estados Unidos, o apoio do Irã aos combatentes do Hezbollah contra Israel e o apoio da Eritreia aos rebeldes separatistas contra a Etiópia: todos servem para exemplificar essa estratégia.
O apoio do Estado a atores não estatais hostis em geral se enquadra ao longo de uma faixa que abrange do suprimento de armas, munição e treinamento em um patamar mais elevado à concessão de refúgio no patamar mais baixo. O relacionamento entre o Irã e a milícia xiita Hezbollah representa o exemplo mais poderoso do apoio do Estado em um patamar mais elevado. Durante a guerra de 2006 entre o Hezbollah e Israel, os milicianos xiitas não só dispararam milhares de foguetes Katyusha modernizados de suas bases no sul do Líbano, como também lançaram dois sofisticados mísseis de cruzeiro guiados por radar contra um navio de guerra israelense e uma embarcação mercante51. Embora as Forças de Defesa Israelenses tenham conseguido destruir grande parte do estoque de material bélico do Hezbollah, a disputa não foi decisiva em termos militares. O consenso é que, no mínimo, o Hezbollah “venceu a guerra das narrativas” contra o seu adversário mais sofisticado52.
Para alguns observadores, essa suposta vitória de um ator não estatal contra um Estado moderno ressalta suas advertências sobre o iminente caos mundial. Ao fazer essa declaração, porém, eles demonstram não compreender a fonte da força do Hezbollah: seu relacionamento de dependência com o Irã e, em menor grau, com a Síria. O Hezbollah não criou sua impressionante gama de armas modernas do nada nem desenvolveu de forma independente as táticas, técnicas e procedimentos para empregá-las. Em vez disso, armas iranianas completaram o impressionante arsenal do Hezbollah, e assessores da Guarda Revolucionária do Irã criaram o centro de comando e controle que coordenou os mísseis dos milicianos. Em alguns casos, os próprios membros da guarda dispararam os mísseis53. O Hezbollah há muito atua como o “Comando Ocidental Iraniano” de fato na guerra a distância de Teerã com Tel Aviv, e há quem interprete a militarização do sul do Líbano como uma barreira estratégica para impedir um ataque israelense contra a infraestrutura nuclear que está surgindo no Irã54.
Nem todo o apoio do Estado a atores não estatais hostis ocorre na escala Irã-Hezbollah. No extremo oposto da faixa de apoio estatal, mas não menos fundamental, está a concessão de refúgio. Os estudiosos que examinam a ação coletiva há muito reconhecem que os dissidentes precisam estabelecer um “espaço livre” ou refúgio para organizar, planejar e mobilizar as suas atividades de oposição fora do controle do grupo dominante55. No âmbito nacional, esses refúgios podem incluir locais tão simples quanto cafés, cabeleireiros e esconderijos. No âmbito internacional, esses santuários se tornam mais isolados, variando desde os refúgios oferecidos aos terroristas até os acampamentos patrocinados pelos Estados, a partir de onde os atores não estatais hostis recrutam, treinam, equipam e atacam. Relativamente protegido pelas restrições normativas do sistema internacional sobre a agressão direta interestatal e pelas forças militares convencionais do anfitrião, o santuário é um significativo multiplicador de forças que permite que atores não estatais hostis operem fora do alcance de seus inimigos. Até certo ponto, os sucessos iniciais da Al-Qaeda como organização terrorista mundial podem ser atribuídos à proteção que ela recebeu do antigo regime talibã no Afeganistão.
Há mais de uma década, os cientistas políticos propõem que o ideal do Estado westfaliano [...] assemelha-se mais a uma descrição abreviada acadêmica do que a uma realidade empírica.
Assim, da mesma forma que em relação ao apoio do Kaiser aos terroristas sikhs e do Sinn Fein ou ao apoio dos Bourbons aos pretendentes escoceses, não podemos concluir que as atividades do Hezbollah e outros grupos apoiados pelo Estado sejam estritamente transnacionais56. Em vez disso, devemos considerá-los como extensões assimétricas da política interestatal tradicional. Embora esses atores não estatais possam ter seus próprios objetivos ou crenças políticas, os efeitos acentuados que eles podem ter sobre os adversários não podem ser separados das vantagens do patrocínio estatal. Para os terroristas, o apoio estatal sem dúvida oferece acesso a tecnologias mais letais e a espaços protegidos, mesmo que ele não garanta o êxito. Os atentados de 11 de Setembro pela Al-Qaeda custaram à organização e aos seus patrocinadores talibãs o seu refúgio estatal. Alguns sustentam que a vitória aparente do Hezbollah em 2006 contra Israel foi conquistada a um preço muito alto57. Além disso, para o Estado, o emprego de representantes malignos não oferece garantia alguma de que suas metas de política sejam cumpridas. Na verdade, a evidência empírica demonstra que o emprego de representantes resulta em poucos triunfos, por mais determinado que seja o esforço. Contudo, mesmo que a pequenez do mundo moderno jogue a tática de negação plausível na lixeira, empregar atores não estatais hostis para executar o trabalho sujo é em geral uma alternativa mais barata do que enfrentar rivais diretamente, ainda que seja apenas porque o risco de represália seja relativamente pequeno.
Estamos Mais Próximos do Final ou do Meio?
O sistema westfaliano não está, na verdade, em declínio; esse esquema, conforme o imaginamos, nunca existiu de fato além de um modelo comportamental proposto, que exemplificava a experiência americana. Em vez disso, a territorialidade, soberania e igualdade, os princípios orientadores desse sistema ideal, foram sempre transacionais, se não completamente ilusórios, porque simplesmente não existem mecanismos eficazes de imposição mundial. É verdade que, ao longo de vários séculos, os Estados desenvolveram práticas habituais destinadas a moderar políticas agressivas ou a regularizar o comportamento interestatal. Embora essas convenções fiquem cada vez mais sofisticadas e, em alguns casos, mais duráveis com o tempo, o seu cumprimento continua sujeito aos caprichos dos interesses de Estados individuais. Em um mundo preocupado com a sobrevivência, os Estados fortes ainda fazem o que podem, e os Estados fracos continuam a sofrer o que devem.
O que está em declínio é a capacidade dos Estados Unidos de dominarem o ambiente mundial de forma inconteste. Há quase um século, os formuladores de política e teóricos americanos consideram o poder dos EUA essencial para manter a segurança e a prosperidade internacional. Woodrow Wilson rejeitou categoricamente a política de poder europeia, acreditando que a missão dos Estados Unidos era criar uma ordem mundial dedicada à promoção de “valores liberais, democráticos e capitalistas de ordem, lei e harmonia”58. O surgimento dos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, como o mais poderoso Estado do sistema internacional colocou o país em uma posição inédita para efetuar significativa transformação mundial. Controlando mais da metade da produção de bens manufaturados do mundo e respondendo por um terço de todas as exportações, os Estados Unidos do pós-guerra eram o motor essencial para reconstruir e modernizar a Europa e o mundo devastados pela guerra59. Além disso, preocupados que a falta de prosperidade geral fizesse com que o desastre econômico dos anos entre-guerras voltasse a ocorrer, os formuladores de política americanos atrelaram, de forma inextricável, o poder econômico da nação à sua política de segurança, uma política mais obviamente concretizada no Plano Marshall e reforçada pelo seu sucesso60. Tendo como pano de fundo o espectro de aniquilação nuclear da Guerra Fria, os Estados Unidos assumiram o manto de poder hegemônico benevolente, o indispensável definidor e aplicador de regras61.
O poder americano é paradoxal, porém. Segundo Joseph Nye, por um lado, a comunidade internacional exige a liderança de Washington, assim como sua dependência e interdependência por meio dos processos de globalização. Por outro lado, esses processos atraem a oposição e o conflito onde os benefícios da globalização não se firmam62. Em essência, dependendo do ponto de vista, os Estados Unidos são, ao mesmo tempo, a solução e o problema.
A inexistência de uma ameaça mundial abrangente e a difusão da prosperidade da globalização capacitaram um maior número de Estados a buscar interesses que desafiam cada vez mais a hegemonia americana. Apesar dos laços com a Otan, os Estados da Europa Ocidental muitas vezes têm políticas que vão de encontro às metas de Washington. A Rússia, até o presente, otimizou a sua política interna pós-soviética e explorou suas reservas de petróleo e gás natural, capacitando Moscou a mais uma vez oferecer reações fortes às percebidas transgressões americanas. A China, a Índia e o Brasil industriais estão assumindo, de forma gradual e constante, uma maior parcela dos mercados de capital, que historicamente sustentaram o poder americano. Potências regionais menores e mais concentradas, como a Síria, Coreia do Norte, Irã e Venezuela, desafiam cada vez mais a liderança dos Estados Unidos ao se engajarem na atividade criminosa internacional ou na proliferação de tecnologias perigosas. Mesmo nações menores independentes, como o Sudão, Zimbábue e Eritreia, sentiram-se livres em seus esforços para abandonar a comunidade internacional a fim de buscar políticas internas aparentemente autodestrutivas que arriscam a desestabilização regional. Quando se acrescenta a essa ansiedade pós-11 de Setembro de Washington a possibilidade de que os efeitos de transbordamento de Estados fracos ou em desagregação promoverão a disseminação de pandemias, o terrorismo transnacional e a proliferação de armas especiais, pode parecer que o sistema internacional vai desintegrar-se63.
No contexto da cultura nacional e estratégica dos EUA, a ampla resposta de Washington a essas mudanças parece previsível. Roger Whitcomb observa que, para os americanos, um sentido de excepcionalidade, uma tendência de enxergar problemas como sendo dicotômicos e uma preferência por soluções rápidas muitas vezes determinam abordagens unilaterais, colocando os Estados Unidos cada vez mais em conflito com outros64. Além disso, a tendência de retratar todos os desafios como crises pode fazer com que se trate cada questão como um problema estratégico separado, que frustra os esforços de priorização65. Finalmente, uma crença permanente em normas morais e jurídicas universalmente aplicáveis confere aos americanos um sentido de propósito legítimo66. Desse ponto de vista, os americanos tendem a avaliar mudanças no sistema internacional, mesmo mudanças naturais, como um mal potencial, que exige uma resposta imediata, no que veio a ser denominado Realismo idealista67.
A impaciência e a necessidade de soluções rápidas para uma série interminável de crises percebidas são possíveis fontes da crescente militarização da política externa americana. A crença inabalável dos Estados Unidos em normas e valores universalmente aplicados pode estar na base do que alguns observadores consideram uma abordagem de “tamanho único” à resolução de problemas68. Fundamentalmente, não há diferença entre a forma como Washington resolve os problemas hoje e há 50 anos. A abordagem americana à resolução de problemas contribuiu muito para a segurança e a prosperidade do mundo pós-guerra. O que mudou, porém, é o cenário geopolítico. Quando vistas da perspectiva do resto do mundo, muitas ações dos EUA podem ser compreendidas como uma preocupante e até nociva luta contra “moinhos de vento” geopolíticos. Embora nenhum Estado individual possa opor-se ao poder americano atualmente, os esforços dos EUA de “estar em todo lugar o tempo todo” geram o risco de que esse incapacitante ímpeto imperial vá expor a nação a um acordo liderado não por alguma entidade transnacional imaginada, mas por um ou mais Estados rivais em ascensão. Como observa Paul Kennedy, como toda grande potência que ocupa o lugar principal no mundo, para prosperar, os Estados Unidos precisam equilibrar o que percebem como suas exigências de segurança com os meios que possuem para cumpri-las, assim como sua capacidade de conservar e desenvolver os motores tecnológicos e econômicos de tal potência69.
À luz disso, concentrar os esforços nacionais na ameaça errada — dada, especialmente, a gama cada vez mais ampla de compromissos dos Estados Unidos — pode fazer enguiçar aqueles motores essenciais do poder de forma rápida. Comprometer recursos enormes, por exemplo, para amparar todo Estado em desagregação, com base na pequena possibilidade de que não fazê-lo capacitaria um grupo terrorista a desenvolver uma arma de destruição em massa, parece um gasto excessivo quando se recorda a antiga crença de que os Estados Unidos poderiam ter sobrevivido a um conflito nuclear limitado com a União Soviética. Dados os grandes riscos em questão, uma melhor alternativa para concentrar-se exclusivamente em ameaças poderia ser aproveitar as oportunidades que surgem em um sistema internacional em mutação.
O retorno da multipolaridade é um mal que vem para bem, que chega com bastante atraso. Se devidamente moldada, a ascensão de outras potências com credibilidade pode permitir que Washington distribua mais amplamente a responsabilidade pela segurança coletiva entre um público mais diverso e culturalmente relevante. Orientar — e não resistir — o surgimento de diversas esferas de influência dentro de um marco normativo redefinido, que vá além do simples idealismo de Wilson, tem o potencial de absorver possíveis encrenqueiros e pode oferecer um melhor meio de ampliar a prosperidade mundial ao aumentar o número de partes interessadas capacitadas. Tal sistema pode, com o tempo, transformar-se em um prático conselho de segurança de Estados que reflita não os antigos relacionamentos marciais, e sim a distribuição real do poder mundial. Mais importante, os Estados Unidos seriam fortalecidos se planejassem uma transição do papel desgastante de polícia do mundo para um papel mais adequado a um ouvidor mundial. Essa mudança pode simultaneamente conservar o poder americano no longo prazo e proteger a nação da responsabilidade final. Por fim, tal sistema destacaria com mais eficácia os encrenqueiros estatais e permitiria que os Estados Unidos concentrassem seus recursos finitos em ameaças verdadeiras em vez de imaginadas.
Mudanças profundas no sistema internacional sempre foram e sempre serão motivo de preocupação. O declínio do poder hegemônico indispensável e o retorno à multipolaridade podem ser especialmente preocupantes porque os americanos há muito consideram sua liderança em um mundo unipolar como a melhor garantia de segurança e prosperidade. Qualquer mudança na ordem mundial ameaça desmoronar a nossa sociedade bem ordenada porque, como nossos antepassados medievais, nós nos vemos como a última conquista do tempo. É mais provável, porém, que ainda estejamos situados em algum ponto intermediário.
Referências
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- Muitos promovem esses temas, mas uma boa visão geral desse gênero consta de VAN CREVELD, Martin. The Rise and Decline of the State (New York: Cambridge Univ. Press, 1999), p. 394.
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- Um exemplo que relaciona a Primeira Guerra Mundial a um retorno à Idade das Trevas é relatado por TOYNBEE, Arnold J. “The Issues in British Foreign Policy”, International Affairs, 17 (May/June 1938), p. 406. A advertência sobre a Idade das Trevas referente à ascensão do nazismo de Hitler também foi destaque em RIEGEL, O. W. Mobilizing for Chaos (New Haven, Conn.: Yale Univ. Press, 1934), conforme a análise de MOORE, Harry E. Social Forces, 13 (May 1935), pp. 609-10.
- Normalmente atribui-se a Petrarca, poeta do século XIV, a formulação do conceito de Idade das Trevas, correspondendo em geral à Alta Idade Média (c. 500-1000). Consulte MOMMSEN, Theodor E. “Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’”, In: FINDLEN, Paula (ed.). The Italian Renaissance: The Essential Readings (Malden, Mass: Blackwell, 2002), p. 219.
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- Um excelente exemplo contemporâneo de raciocínio utópico consta de KERR, Philip. “The Outlawry of War”, Journal of the Royal Institute of International Affairs, 7 (November 1928), pp. 361-68.
- PFALTZGRAFF, p. 29.
- O Sacro Imperador Romano firmou a Paz de Westfália com o Rei da França e com a Rainha da Suécia, e esses países atuaram como protetores principalmente dos aspectos religiosos dos tratados. Deve-se notar que a França e a Suécia já eram potências independentes antes das guerras e continuaram a sê-lo depois delas. OSIANDER, Andreas. “Sovereignty, International Relations, and the Westphalian Myth”, International Organization, 55 (Spring 2001), pp. 251-87.
- KRASNER, p. 147.
- OSIANDER, “Sovereignty, International Relations, and the Westphalian Myth”.
- Ibid. Osiander cita a definição de Landeshoheit de Johann Jacob Moser, pensador jurídico alemão do século XVIII: “direito pertencente aos [governantes] que os capacita, em suas terras e territórios, a comandar, proibir, decretar, empreender ou omitir tudo que… diga respeito a qualquer governante, na medida em que suas mãos não estejam atadas por leis e tradições do Império, tratados com suas propriedades locais e súditos, liberdades e tradições antigas e consagradas destes últimos e assim por diante”. Osiander também observa que alguns estudiosos alemães identificaram a falta de termos estritamente soberanos no sentido moderno no tratado como um dos motivos pelos quais um Estado unitário alemão não se desenvolveu até o final do século XIX.
- Ibid. Martin van Creveld interpreta isso de forma diferente, afirmando que, como o tratado conferiu aos príncipes subordinados o poder de fazer alianças contanto que elas não estivessem voltadas contra o imperador, isso constituía, de alguma forma, a soberania. Na opinião do autor, essa restrição ataca diretamente as noções modernas de soberania e reforça a legitimidade do império dos Habsburgos. Consulte VAN CREVELD, p. 86.
- Ibid. Além disso, a referência ao guarda-roupa utilizado como portal mágico entre o mundo real e o reino mágico de Nárnia é de LEWIS, C. S. The Lion, the Witch, and the Wardrobe (New York: Harper Collins, 2005).
- KRASNER, pp. 118-19.
- Ibid. p. 117.
- Ibid. p. 147. Não surpreende que Krasner observe que os Estados Unidos, com suas instituições derivadas de forma autóctone, sejam um Estado forte que esteja mais em conformidade com o modelo westfaliano, especialmente quando se considera que os teóricos de relações internacionais americanos provavelmente tinham sua própria nação em mente ao desenvolver o modelo.
- “O forte faz o que pode, e o fraco sofre o que deve”. FORDE, Steven. “International Realism and the Science of Politics: Thucydides, Machiavelli, and Neorealism”, International Studies Quarterly, 39 (June 1995), p. 147.
- Citado em TILLY, Charles. Democracy (Cambridge, U.K.: Cambridge Univ. Press, 2007), p. 30.
- Ibid., p. 38.
- Ibid., p. 78.
- JACKSON, Robert H. Quasi-States: Sovereignty, International Relations, and the Third World (Cambridge, United Kingdom: Cambridge Univ. Press, 1990), p. 21. Bem mais recentemente, o termo “quase-Estado” foi utilizado para descrever sub-regiões de Estados que se separaram e onde dissidentes exercem a jurisdição de fato, embora não sejam reconhecidos pela comunidade internacional. Consulte KOLSTO, Pal. “The Sustainability and Future of Unrecognized Quasi-States”, Journal of Peace Research, 43 (November 2006), pp. 723-40.
- Desses 28, 22 estão situados na África. Consulte RICE, Susan E.; PATRICK, Stewart. Index of State Weakness in the Developing World (Washington: The Brookings Institution, 2008), disponível em: https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2016/06/02_weak_states_index.pdf.
- OSSIANDER. “Sovereignty, International Relations, and the Westphalian Myth”.
- Consulte a resenha de Thomas J. Volgy sobre The Web of World Politics: Non- State Actors in the Global System, de Richard W. Mansbach, Yale H. Ferguson e Donald E. Lampert, The Western Political Quarterly, 29 (December 1976), pp. 658-59.
- Tanto Volgy quanto Peter Willetts observaram que o termo ator não estatal pode incluir tantos grupos a ponto de torná-lo irremediavelmente ambíguo. Willetts fornece um ótimo resumo do pensamento contemporâneo sobre os atores não estatais e suas interações. Consulte VOLGY; WILLETS, Peter. “Transnational Actors and International Organizations”, in BAYLIS, John (ed.). Globalization of World Politics: An Introduction to International Relations (2d ed.; New York: Oxford Univ. Press, 2001).
- WEBER, Max. The Theory of Social and Economic Organization, A. M. Henderson and Talcott Parsons, trans. (New York: Free Press, 1964), p. 154, citado em HOWE, Herbert M. “Private Security Forces and African Stability: The Case of Executive Outcomes”, The Journal of Modern African Studies, 36 (June 1998), p. 308.
- Willetts se refere a empresas e organizações não governamentais como exemplos de atores não estatais legítimos.
- POTTER, David. “The International Mercenary Market in the Sixteenth Century: Anglo-French Competition in Germany, 1543-50”, The English Historical Review, 111 (February 1996), pp. 24-26.
- Os Estados em geral reconheciam que as cartas de corso estendiam o status de combatente às embarcações mercantes. Consulte a Constituição dos EUA, artigo 1, seção 8.
- HOWE, p. 26.
- SUTHERLAND, L. S. “The East India Company in Eighteenth-Century Politics”, The Economic History Review, 17, no. 1 (1947), p. 24.
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- Para uma discussão sobre a tentativa de administração comercial por Portugal, consulte NEIL-TOMLINSON, Barry. “The Nyassa Chartered Company: 1891-1929”, The Journal of African History, 18, no. 1 (1977), pp. 109-28. Para uma análise detalhada do envolvimento colonial da Alemanha na Tanzânia, consulte KOPONEN, Juhani. Development for Ex ploitation: German Colonial Policies in Mainland Tanzania, 1884-1914 (Helsinki: Studia Historica, 1994).
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- Ibid. Charles Kindleberger, ele próprio um participante no Plano Marshall, e outros conceberam a teoria de estabilidade hegemônica para explicar a utilidade da superpotência benigna.
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- WHITCOMB, pp. 59-63.
- Ibid., p. 70.
- Ibid., p. 14, pp. 41-42.
- BEYER, p. 106.
- PATRICK, p. 48.
- KENNEDY, p. 514.
O Ten Cel P. Michael Phillips é oficial de ligação junto às forças militares do Paquistão. Formou-se em 2009 pela Escola de Guerra do Exército dos EUA e é mestre em Ciências Políticas pela Indiana University. Serviu como adido de Defesa na Tanzânia, Eritreia e Libéria.
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