Arte operacional chinesa
A primazia da dimensão humana
Rob Hafen
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As instituições de ensino militares dos Estados Unidos da América (EUA), como a Escola de Guerra do Exército e a Escola de Comando e Estado-Maior, dedicam bastante tempo ao estudo do modo de guerra ocidental, ou estadunidense. Apesar de os documentos de segurança nacional dos EUA identificarem a China como nosso desafio iminente e dos mais de 2.500 anos de história e teoria militar chinesa, as Forças Armadas estadunidenses dedicam muito pouco tempo ao estudo do modo de guerra chinês. Na Escola de Comando e Estado-Maior (Command and General Staff College, CGSC) do Exército dos EUA, há apenas um curso eletivo sobre o modo de guerra chinês, com um cenário de treinamento do USINDOPACOM a ser implementado no ano acadêmico de 2024.
Os oficiais estadunidenses, em sua maioria, são incentivados a ler o livro Arte da guerra, de Sun Tzu, durante sua instrução básica. Esse clássico é um dos livros sobre estratégia militar mais influentes no mundo e muito esclarecedor sobre a arte estratégica, operacional e tática chinesa. Foi compilado perto do fim do período da Primavera e Outono pré-unificação da China (772-476 a.C.) e no início do período dos Estados Combatentes (475-221 a.C.).1 No entanto, aborda apenas de forma superficial o pensamento militar chinês. Outros teóricos, como Confúcio, Lao Tzu, Mao Tsé-Tung e muitos outros, contribuem para uma gama diversificada e complexa da teoria estratégica chinesa.
Existe alguma diferença entre o modo de guerra estadunidense e o modo de guerra chinês no ambiente estratégico atual? Há séculos, estudiosos discutem as complexidades da divisão cultural e filosófica entre o Oriente e o Ocidente. Obviamente, existem algumas diferenças culturais e filosóficas importantes. No entanto, no ambiente atual, tanto os EUA quanto a China são grandes potências no sistema internacional, utilizando meios teóricos, doutrinários, materiais e organizacionais semelhantes de poder nacional. Por exemplo, o fundador da moderna República Popular da China (RPC), Mao Tsé-Tung, inspirou-se tanto, ou mais, na obra Da guerra, do teórico prussiano Carl von Clausewitz, quanto na Arte da guerra, de Sun Tzu.2 Nos últimos 25 anos, o Exército de Libertação Popular (ELP) investiu fortemente em tecnologia moderna de informação e armas, treinamento, educação e organização, em uma tentativa de equiparar suas capacidades terrestres, aéreas, marítimas, cibernéticas e espaciais às dos EUA. O investimento pesado da China em capacidades antiacesso/negação de área (antiaccess/area denial, A2/AD) está fazendo com que as Forças Armadas estadunidenses busquem novos materiais bélicos e soluções organizacionais para um possível conflito em Taiwan.3 Entretanto, há uma diferença importante entre as abordagens chinesa e estadunidense para resolver problemas estratégicos, operacionais e táticos. Enquanto as Forças Armadas estadunidenses tendem a se concentrar em soluções de alto custo e centradas na tecnologia, mais de 2.500 anos de história e teoria militares chinesas revelam uma preferência por soluções de baixo custo e centradas no ser humano.
A análise do conceito de operações em múltiplos domínios com foco em tecnologia do Exército dos EUA, conforme descrito no Manual de Campanha 3-0, Operações (FM 3-0, Operations), ilustrará a diferença na abordagem de cada país. Este artigo analisará os principais conceitos dos períodos feudal e dinástico da China usando a Arte da guerra, de Sun Tzu e extratos dos 36 estratagemas chineses. Por fim, este artigo examinará a arte operacional chinesa moderna, conforme demonstrada por Mao durante a guerra civil chinesa (1946-1949) e descrita no livro Unrestricted Warfare (intitulado A guerra além dos limites, no Brasil) de Qiao Liang e Wang Xiangsui, publicado em 1999. Em geral, quando a arte operacional é mencionada neste artigo, a arte estratégica e tática também está implícita.
O conceito de operações em múltiplos domínios do Exército dos EUA, focado na tecnologia
O capítulo introdutório do recém-publicado manual doutrinário fundamental do Exército dos EUA, FM 3-0, destaca a importância do domínio terrestre para a obtenção de resultados estratégicos decisivos. No entanto, ele também reconhece que o domínio terrestre exige o emprego de armas combinadas nos domínios aéreo, marítimo, cibernético e espacial para alcançar o êxito. Essa convergência de efeitos de todos os domínios é conhecida como operações em múltiplos domínios (MDO).4 As MDO reconhecem o imenso desafio para as forças dos EUA, que precisam vencer em situação de inferioridade numérica e isolamento, criando e explorando posições de vantagem relativa. A arte operacional chinesa defende o isolamento dos adversários, e eles já estão trabalhando para alcançar essa capacidade com sua estrutura de sistemas A2/AD. O conceito de MDO foi desenvolvido principalmente como uma maneira de as forças conjuntas derrotarem os sistemas A2/AD da China.5
O conceito de MDO também apresenta três dimensões: física, informacional e humana. A dimensão física inclui “as características e capacidades materiais, tanto naturais quanto fabricadas, em um ambiente operacional”.6 A dimensão informacional é definida como “o conteúdo, dados e processos usados por indivíduos, grupos e sistemas de informação para se comunicarem”.7 A dimensão humana é definida como “abrangendo pessoas e a interação entre indivíduos e grupos, a forma como compreendem as informações e os eventos, tomam decisões, geram determinação e agem em um ambiente operacional”.8 Todas as três dimensões são inter-relacionadas, interdependentes e afetam todos os domínios. No entanto, a maior parte do FM 3-0 é dedicada à atuação na dimensão física. O conceito de MDO depende muito de soluções inovadoras e focadas em tecnologia, aproveitando o espaço, o ciberespaço, a inteligência artificial, a robótica, os sistemas não tripulados e o poder de fogo de longo alcance.
Embora o FM 3-0 aborde as dimensões humana e informacional, há muito pouco progresso sobre como o Exército dos EUA planeja criar uma vantagem relativa para explorar essas dimensões e como elas se relacionam com a prática da arte operacional, dissimulação, operações psicológicas e operações de informação. No capítulo introdutório, o FM 3-0 reconhece o ambiente atual complexo que exige líderes que entendam tanto a ciência quanto a arte das operações:
Não há como eliminar a incerteza, e os líderes devem aplicar a arte operacional para tomar decisões e assumir riscos. Fatores intangíveis, como o impacto da liderança sobre o moral, o uso do efeito de choque para derrotar as forças inimigas e o apoio das populações são fatores fundamentalmente humanos que podem superar as desvantagens físicas e, muitas vezes, decidir os resultados de uma operação.9
Se a arte operacional e os fatores humanos são tão decisivos, por que são tão pouco mencionados na versão de 2022 do FM 3-0?
Na versão anterior (2017) do FM 3-0, a ideia de arte operacional foi abordada em algumas páginas na introdução.10 As operações de informação, a dissimulação militar e as operações de apoio à informação militar também foram abordadas no segundo capítulo.11 Na versão de 2022, as explicações sobre esses conceitos e capacidades foram removidas. Essa versão do FM 3-0 esboça uma visão clausewitziana da natureza da guerra na introdução, destacando o propósito político da guerra, seu caos e incerteza intrínsecos e o fato de ser um esforço humano.12 Também acrescenta considerações informacionais às variáveis da missão, definidas como “aspectos das dimensões humana, informacional e física que afetam a forma como os seres humanos e os sistemas automatizados extraem significado, usam, agem e são afetados pelas informações”.13 No entanto, a única aplicação significativa da arte operacional e do domínio humano na versão de 2022 do FM 3-0 consta de uma seção de duas páginas sobre mecanismos de derrota e estabilização.14 Essa falta de foco na arte operacional e nos fatores humanos e informacionais da guerra é coerente com a preferência das Forças Armadas estadunidenses por soluções de alta tecnologia, alto custo e material bélico para resolver problemas estratégicos, operacionais e táticos.
Arte da guerra, de Sun Tzu
A influência global da obra Arte da guerra, de Sun Tzu, sobre estrategistas, especialistas em arte operacional e especialistas táticos não pode ser desprezada. O padre Joseph-Marie Amiot, um missionário jesuíta, trouxe o trabalho de Sun Tzu para o Ocidente com sua tradução para o francês em 1782.15 O livro foi traduzido pela primeira vez para o inglês por Lionel Giles, em 1910, e, posteriormente, por Samuel B. Griffith, em 1963. No entanto, a obra tem guiado o pensamento militar no Leste Asiático há milênios. Edward O’Dowd e Arthur Waldron afirmaram que “os padrões estratégicos baseados nos escritos de Sun Tzu estão profundamente enraizados no pensamento das nações asiáticas sinicizadas”.16 Muitos profissionais militares ocidentais têm uma compreensão superficial da obra de Sun Tzu. Os estudiosos militares devem se aprofundar no contexto histórico, cultural e filosófico da China do século IV a.C. para compreender as características singulares da arte operacional chinesa defendida na Arte da guerra. A compreensão das diversas e, às vezes, conflitantes filosofias chinesas do taoísmo, confucionismo e legalismo elucida as máximas, às vezes enigmáticas, de Sun Tzu.
Para decodificar Arte da guerra, é preciso compreender os quatro conceitos-chave de tao (geralmente traduzido como “o caminho”), shih, cheng e ch’i. Os primeiros parágrafos de Arte da guerra afirmam: “A guerra é o assunto de maior magnitude do Estado, a base da vida e da morte, o tao para a sobrevivência ou a extinção”.17 Sun Tzu menciona o tao como o primeiro dos cinco fatores que um oficial-general precisa avaliar antes de iniciar uma campanha. Em seguida, explica que o tao faz com que os soldados estejam totalmente em sintonia com seu líder, sem temer o perigo e dispostos a morrer com ele.18 Isso implicaria que o tao consiste no espírito ou força moral intangível que une uma nação ou um exército. No pensamento militar ocidental, isso é conhecido como espírito de corpo, moral ou espírito de luta. O reconhecimento do tao da guerra está diretamente relacionado à compreensão da dimensão humana da guerra. Em outro parágrafo, Sun Tzu declara: “A guerra é o tao da dissimulação. Quando for capaz, aparente incapacidade. Quando estiver decidido a empregar suas forças, simule inatividade.”19 A arte da dissimulação reside totalmente na dimensão humana e na psicologia. Tanto a dissimulação quanto a derrota ocorrem na mente do líder nacional, do comandante ou das forças militares. Esse tao da guerra na arte operacional de Sun Tzu prioriza os efeitos intangíveis e as formas de explorar a dimensão humana.
Shih é o próximo conceito fundamental para entender a Arte da guerra. Na tradução de Ralph D. Sawyer, shih é traduzido como poder estratégico. “Depois de estimar as vantagens de acordo com o que você ouviu, coloque-as em prática com poder estratégico (shih).”20 Timothy L. Thomas traduz esse conceito como vantagem estratégica.21 Esse conceito é frequentemente comparado à corrente forte e súbita de água que desce das montanhas após um temporal ou à água que invade após o rompimento em uma grande represa. Isso cria um imenso reservatório de energia potencial. Quando liberada no momento certo e transformada em energia cinética, ela cria um fluxo irresistível, permitindo que um general ou líder político prevaleça sobre seus inimigos. Usando o conhecido axioma da Arte da guerra sobre conhecer a si mesmo, seu inimigo e o terreno, um líder pode encontrar ou criar vantagens a serem exploradas.22 Shih é comparável ao atual foco no conceito de MDO do Exército dos EUA de criar e explorar vantagens relativas.23 Entretanto, para Sun Tzu, isso não é feito apenas pela busca de vantagens em termos de material bélico, poder de fogo ou terreno. É igualmente importante criar vantagens estratégicas, operacionais e táticas a serem exploradas na dimensão humana, usando suas próprias tropas, pessoas e líderes políticos, bem como os de aliados e adversários.
Os conceitos de cheng e ch’i também são fundamentais para entender a arte operacional de Sun Tzu. Esses conceitos são semelhantes às ideias taoistas dualistas de yin e yang. Cheng refere-se a formas e meios ortodoxos, regulares, convencionais, substanciais ou usuais de resolver problemas militares. Ch’i denota formas e meios não ortodoxos, irregulares, não convencionais ou incomuns.24 Como dois lados da mesma moeda, o cheng e o ch’i precisam ser usados em conjunto para obter a vitória. Este trecho de Arte da guerra mostra como interagem:
No combate, o indivíduo aplica o cheng e alcança a vitória por meio do ch’i. Assim, aquele que se destaca no envio do ch’i é tão inesgotável quanto o Paraíso, tão ilimitado quanto os rios Yangtze e Amarelo […] Não há mais do que cinco notas musicais, mas as combinações dessas cinco dão origem a mais melodias do que se pode ouvir. Não há mais do que cinco cores primárias, mas combinadas elas produzem mais matizes do que se pode enxergar. Não há mais do que cinco sabores principais, mas a combinação deles resulta em mais sabores do que se pode degustar. Na guerra, as configurações estratégicas de poder não extrapolam o cheng e o ch’i, mas as mudanças do ch’i e do cheng nunca são completamente esgotadas. O ch’i e o cheng se produzem mutuamente, como em um ciclo sem fim. Quem é capaz de esgotá-los?25
Comparável à ciência e arte da guerra, às dimensões física e humana ou às forças tangíveis e intangíveis, o uso hábil do cheng e do ch’i, que se apoiam mutuamente, é essencial para o conceito de arte operacional de Sun Tzu.
Uma máxima da Arte da guerra frequentemente citada é “subjugar o exército inimigo sem lutar é o verdadeiro auge da excelência”.26 Quando se pensa em termos operacionais ou táticos, essa abordagem parece muito difícil e irracional. Se as forças já foram enviadas para o combate, como os comandantes operacionais ou táticos podem vencer sem lutar? Entretanto, sob uma perspectiva estratégica, o provérbio de Sun Tzu faz muito sentido. Sun Tzu enfatiza que é preferível atacar os planos do inimigo, depois seus aliados, depois seu exército e, por último, suas cidades fortificadas.27 Os dois primeiros (planos e aliados) são objetivos de nível estratégico que atingem o centro de gravidade moral do inimigo. O’Dowd e Waldron identificam isso como um ataque à harmonia política de um adversário. Eles argumentam que o modo chinês de vencer sem lutar consistia em usar a guerra psicológica para semear o caos na sociedade, economia, política interna, alianças e na prontidão militar do inimigo. Se o estado de um adversário fosse de caos, a legitimidade da liderança política seria questionada, tornando-o vulnerável a rebeliões internas ou invasões.28 A estratégia atual do Partido Comunista da China (PCC) parece estar muito focada nas dimensões psicológica, humana e informacional no nível estratégico.29 A estratégia estadunidense de dissuasão por meio do poderio, alianças e forças em postos avançados é outro exemplo de estratégia psicológica criada para evitar que um adversário sequer decida usar a força.
Em resumo, a maioria dos profissionais militares lê a Arte da guerra, de Sun Tzu, para extrair os conceitos estratégicos, operacionais e táticos universais que ainda se aplicam à guerra atualmente. No entanto, para compreender de fato como a obra fundamenta o pensamento chinês, precisamos compreender o contexto filosófico fundamental e os conceitos desenvolvidos na China há 2.500 anos.30 Esse conhecimento contextual é ilustrado também pelos 36 estratagemas chineses.
Os 36 estratagemas chineses
As seguintes seleções dos 36 estratagemas da China comprovarão a preferência chinesa pela exploração da dimensão humana mediante o uso de espionagem, dissimulação, manipulação, guerra psicológica e guerra da informação. Os 36 estratagemas são uma coleção de expressões sobre estratégia política e militar que remontam à China pré-dinástica, transmitidas por histórias escritas e orais. Só vieram a ser compilados em um único volume no século XVII d.C., quando um estudioso anônimo os publicou em um livro intitulado Secret Art of War: Thirty-Six Strategies (“A arte secreta da guerra: trinta e seis estratégias”, em tradução livre).31 The Wiles of War (“As artimanhas da guerra”, em tradução livre), de Sun Haichen, e The Book of Stratagems (intitulado O livro dos estratagemas, no Brasil), de Harro Von Senger, apresentam duas versões abrangentes em inglês com vários cenários históricos e análises que nos ajudam a entender esses provérbios tipicamente chineses. A lista a seguir apresenta alguns dos estratagemas mais relevantes que ilustram a atual abordagem estratégica do PCC e as possibilidades da arte operacional do ELP.
Estratagemas estratégicos usando elementos do poder nacional
Pegue emprestado um cadáver para o retorno da alma. Isso representa reavivar uma instituição, tecnologia, método, narrativa histórica ou ideologia que tenha sido esquecida ou descartada para aumentar o moral e o fervor da população e das tropas.32 Um excelente exemplo disso é a poderosa narrativa histórica do “século da humilhação”, que culpa o colonialismo ocidental pela deterioração da China dinástica e pelo caos civil que se seguiu. O PCC e o ELP continuam a usar essa narrativa para inspirar a conquista nacionalista e a competição com o Ocidente, além de justificar suas políticas para a reunificação de Taiwan.
Observe o fogo na margem oposta. Nesse caso, o estrategista recomenda adiar a entrada em um conflito até que as outras partes fiquem exaustas de lutar entre si. Então, entre com força total para destruí-los ou obter uma posição de dominação.33 O relacionamento de Xi Jinping com Vladimir Putin é um exemplo disso. Xi está dando apoio tácito a Putin, mas observa pacientemente enquanto a Rússia e a OTAN se exaurem na Ucrânia.
Mate com uma faca emprestada. A ideia aqui é causar danos ao inimigo por intermédio de um terceiro.34 Um possível uso desse estratagema seria o PCC usar a Rússia, a Coreia do Norte, o Irã ou, potencialmente, um grupo terrorista para distrair os EUA ou enfraquecer qualquer resposta a uma invasão de Taiwan.
Esconda sua adaga atrás de um sorriso. Esse estratagema é a ofensiva do charme. Faça agrados ao seu adversário. Quando conquistar sua confiança, atinja-o, veladamente.35 Isso é claramente demonstrado pela política econômica neocolonialista da China e pelos projetos “Um Cinturão, Uma Rota”, que se vincularam à economia global e influenciaram as empresas ocidentais a investir conforme as regras chinesas. A atual crise estadunidense com a segurança cibernética, a mineração de dados chinesa e a fabricação de semicondutores é resultado de confiar que a RPC não tinha intenções malignas, até que fosse tarde demais.
A cigarra abandona sua pele. Isso significa deixar para trás seus traços únicos e se tornar imperceptível ou se disfarçar de algo ou alguém.36 Isso é demonstrado pela transição da RPC de uma economia de comando comunista para o capitalismo estatal com uma economia de exportação, na década de 1980. A maioria dos estudiosos ocidentais esperava que o sistema político da China se liberalizasse juntamente com sua política econômica, mas isso obviamente não aconteceu.
Saqueie uma casa em chamas. Quando um país é assolado por problemas internos, como doenças, fome, corrupção e crime, ele não está em condições de lidar com uma ameaça externa. Se alguém usar o estratagema “esconda sua adaga atrás de um sorriso” para atear fogo ou adicionar combustível a ele, melhor ainda.37 Esse estratagema é um componente-chave dos esforços de guerra da informação e cibernética da RPC. Enquanto o mundo luta contra a pandemia da covid-19, crises de governança, segurança cibernética, desinformação, inflação, dívidas e crises econômicas, a China continua a tirar proveito da coleta de dados e a usar a guerra cibernética e da informação para agravar os problemas do Ocidente. As empresas chinesas de tecnologia, onipresentes em mercados estrangeiros, estão se integrando cada vez mais aos sistemas de armazenamento, processamento, controle e segurança de dados da RPC. Isso expõe grandes parcelas da população mundial a um amplo espectro de acúmulo de dados, espionagem e manipulação pela China.38 De acordo com Matt Pottinger, o principal objetivo da estratégia de superioridade de informações da China é “desmantelar a influência estadunidense em todo o mundo”.39 Ao usar uma combinação desses estratagemas, o PCC está fazendo todo o possível para fortalecer a coragem, a determinação e o moral de seu próprio povo e de suas tropas, ao mesmo tempo que enfraquece o de seus adversários.
Estratagemas operacionais e táticos
Sitie Wei para resgatar Zhao. Quando o inimigo estiver em uma posição muito sólida em um lugar, ataque para forçá-lo a defender outro. Evite o ponto forte do inimigo; em vez disso, ataque algum de seus pontos fracos e prepare-se para emboscá-lo. Isso esgotará seu inimigo e você terá uma chance de sucesso muito maior.40 Um possível uso desse estratagema consistiria em incitar uma crise em outra parte do mundo ou na região do Pacífico, como a península coreana, para imobilizar as forças estadunidenses antes que a China aja para tomar Taiwan.
Clamor no leste, ataque no oeste. Mesmo quando estiver frente a frente com um inimigo, a surpresa ainda pode ser empregada ao atacar onde ele menos espera. Crie uma expectativa na mente do inimigo usando uma finta ou demonstração de força. Manipule o inimigo para que concentre seus recursos em outro lugar antes de atacar uma área inadequadamente defendida.41 Esse estratagema tático é muito semelhante ao estratagema mais operacional de sitiar Wei para resgatar Zhao.
Atraia o tigre para a base da montanha. Nunca ataque diretamente um oponente cuja vantagem seja proveniente de sua posição. Em vez disso, atraia-os para longe de sua posição para isolá-los de sua fonte de força.42 Em qualquer conflito com a China, as forças estadunidenses começariam em desvantagem devido às linhas de comunicação marítimas e terrestres de longo alcance.
Suba no telhado e remova a escada. Com chamarizes e dissimulação, atraia o inimigo para terrenos complexos e corte suas linhas de comunicação e rotas de fuga. Para se salvar, eles precisarão combater suas próprias forças e os elementos da natureza.43 Um bom exemplo disso é extraído da Guerra da Coreia, quando as forças do ELP atacaram durante o inverno e cercaram as forças das Nações Unidas depois que essas atingiram os limites de seu alcance operacional no norte da Coreia.44
Aproveite a oportunidade para conduzir as ovelhas. Durante a execução das operações, seja flexível o suficiente para aproveitar qualquer oportunidade que se apresente, por menor que seja, para criar uma vantagem relativa.45 Semelhante a “saquear uma casa em chamas”, esse estratagema se refere a aproveitar todas as oportunidades que se apresentem, como conduzir aliados para longe do seu inimigo.
Tranque a porta para prender o ladrão. Ao planejar dar o golpe final no inimigo, planeje cuidadosamente para ser bem-sucedido; não aja apressadamente. Primeiro, corte as rotas de fuga do inimigo e quaisquer rotas de ajuda externa.46 Durante a guerra civil chinesa e a Guerra da Coreia, o ELP demonstrou o uso inteligente desses seis estratagemas operacionais e táticos. Evitar os pontos fortes do inimigo, usar manobras para cercar as forças inimigas, encontrar, criar e explorar vantagens relativas e usar fintas e demonstrações de força são componentes essenciais da arte operacional chinesa.
Arte operacional chinesa
Em sua obra, Moving the Enemy (“Movendo o inimigo”, em tradução livre), Gary Bjorge argumenta que a arte operacional não tem a ver com tecnologia, mas sim com o pensamento humano. A prática da arte operacional requer os fatores intangíveis da experiência, do instinto e da intuição. “A capacidade de visualizar, prever, criar e aproveitar oportunidades não está em um banco de dados de computador.”47 Ele também mostra como o ELP, sob o comando de Mao Tsé-Tung, praticou essa arte operacional com foco na dimensão humana na decisiva Campanha Huai Hai (1948-1949), durante a guerra civil chinesa. Essa grande campanha envolveu mais de um milhão de forças militares. Quando a campanha terminou, o ELP havia derrotado cinco exércitos nacionalistas e estava ameaçando diretamente a capital nacionalista de Nanjing. Mais tarde, em 1949, Chiang Kai-shek e seus nacionalistas foram forçados a fugir para a ilha de Formosa (Taiwan).48 Embora os nacionalistas apoiados pelos estadunidenses tivessem uma força militar maior, maior poder aéreo e melhores equipamentos, os comunistas tinham muitas vantagens de dimensão humana que exploravam de forma muito eficaz.
Uma vantagem fundamental que os comunistas tinham era a coesão política e militar. Eles usaram de forma eficaz a invasão japonesa e a ideologia comunista para unificar politicamente as áreas que controlavam e suas forças militares. A campanha Huai Hai foi liderada por Chen Yi, Liu Bocheng, Su Yu, Tan Zhenlin e Deng Xiaoping. Por terem lutado juntos durante décadas, esses líderes desenvolveram um alto nível de confiança uns nos outros. Mao confiava nesses comandantes operacionais e permitia que planejassem e executassem a campanha com pouca interferência.49 Por outro lado, os nacionalistas eram atormentados pela dissidência, pela infiltração comunista e pela corrupção. Chiang Kai-shek era um microgerenciador que mantinha a maioria das decisões em seu nível. Ele também não nomeou um comando operacional para supervisionar todas as forças terrestres, marítimas e aéreas envolvidas na campanha.50 Essa diferença de dimensão humana permitiu que os comunistas tomassem decisões e manobrassem para posições de vantagem muito mais rapidamente do que as forças nacionalistas calculistas e inflexíveis.
Uma segunda vantagem para os comunistas era a melhor informação e inteligência, o que lhes permitia manobrar suas forças em um ritmo mais acelerado do que os nacionalistas. Devido aos colaboradores comunistas nos comandos nacionalistas e nos comandos do exército, o ELP sabia a localização dos exércitos nacionalistas, para onde estavam se deslocando e como reagiriam. Eles usaram esse conhecimento, combinado com velocidade, momento oportuno e um sistema de logística flexível para obter uma superioridade numérica em pontos decisivos durante suas ofensivas ao redor de Xuzhou. A logística comunista não estava ligada às redes ferroviárias e rodoviárias principais, como a dos nacionalistas. Como Xuzhou era um importante entroncamento ferroviário entre norte-sul e leste-oeste, era vital que os nacionalistas mantivessem o controle sobre isso. Quando as forças comunistas cercaram o Sétimo Exército nacionalista ao leste de Xuzhou, Chiang Kai-shek enviou outros dois exércitos para socorrer o Sétimo. Os comandantes comunistas haviam previsto isso e prepararam um plano para cercar e derrotar os outros dois exércitos nacionalistas enviados ao norte. Bjorge associa isso a Sun Tzu e ao conceito de shih, ou vantagem estratégica, descrito anteriormente. Os comunistas foram capazes de reconhecer a energia potencial (shih) da situação e manobrar suas forças para cercar e aniquilar três exércitos nacionalistas em vez de apenas um.51
Os líderes do ELP durante a campanha de Huai Hai eram bem versados na teoria militar moderna, bem como na Arte da guerra, de Sun Tzu. Conforme argumenta Bjorge, eles entendiam a psicologia humana e como motivar e manipular os outros. Sabiam como usar as combinações corretas de forças cheng (fixação/retenção) e ch’i (manobra/surpresa) para mover o inimigo de forma proativa, em vez de serem movidos por ele.52 Isso demonstra um alto nível de arte operacional focada na exploração da dimensão humana.
No atual ambiente global, a RPC continua a aplicar seu legado de arte operacional herdado de Sun Tzu. O livro de Qiao e Wang, Unrestricted Warfare, de 1999, alertou o mundo de que uma China renascida estava pronta para desafiar a ordem mundial liderada pelos EUA usando todos os meios à sua disposição. No entanto, essa disposição de explorar a internet, as instituições financeiras, a mídia, a política comercial, as Nações Unidas e outras organizações globais não é algo novo.53 É tão somente uma extensão moderna da arte estratégica e operacional chinesa, que analisa de forma criativa todos os domínios, dimensões e elementos do poder nacional para atingir seus objetivos estratégicos.
Conclusão
As Forças Armadas estadunidenses modernas podem se dar ao luxo de se concentrar em soluções centradas em tecnologia de alto custo, mas isso pode não ser sempre o caso. Como demonstrado recentemente na Ucrânia, o exército com a maior quantidade de armamento de alta tecnologia nem sempre vence. O moral, a coesão, o treinamento, a liderança, a inteligência, as informações, a dissimulação e muitos outros fatores humanos intangíveis e incertos estão em jogo quando o instrumento de guerra é acionado. Há muito o que aprender com a história e a teoria militar chinesas no que diz respeito à dimensão humana e à prática da arte da dissimulação. A preferência dos chineses por soluções de baixo custo centradas no ser humano vem de milhares de anos de prática de guerra. Agora eles têm também os recursos para investir em armamentos de alta tecnologia. Se tiverem sucesso na combinação da última tecnologia em armas com sua arte operacional centrada no ser humano, a China será um inimigo poderoso no campo de batalha.
Em vez de se limitarem apenas a uma leitura superficial da Arte da guerra, de Sun Tzu, os profissionais militares ocidentais devem se esforçar mais para aprender com a imensa experiência da China para que possamos conhecer nosso adversário. A doutrina do Exército dos EUA deve expandir as maneiras pelas quais as forças e os comandantes do Exército podem explorar a dimensão humana durante a competição, a crise e o conflito. Por fim, o Exército dos EUA precisa reincorporar a arte operacional em sua doutrina fundamental, com foco nas dimensões humana e informacional, na dissimulação operacional e tática e nos mecanismos de derrota e estabilidade.
Referências
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- Thomas, The Dragon’s Quantum Leap, p. 8-10.
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- Ibid., p. 1-22.
- Ibid.
- Ibid., p. 1-1.
- Ibid., p. 1-19; 1-22.
- Ibid., p. 2-26; 2-29.
- Ibid., p. 1-6; 1-7.
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- Edward O. O’Dowd e Arthur Waldron, “Sun Tzu for Strategists”, Comparative Strategy 10, no. 1 (1991): p. 25, https://doi.org/10.1080/01495939108402828.
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- Ibid.
- Ibid., p. 158.
- Ibid.
- Thomas, The Dragon’s Quantum Leap, p. 8.
- Sun Tzu, “Art of War”, p. 155.
- FM 3-0, Operations, p. 1-2.
- Sun Tzu, “Art of War”, p. 155.
- Ibid., p. 164. Sawyer traduz cheng como ortodoxo e ch’i como não ortodoxo. Esses termos não descrevem totalmente esses conceitos, por isso mantive os termos chineses nessa citação.
- Ibid., p. 160.
- Ibid., p. 155.
- O’Dowd e Waldron, “Sun Tzu for Strategists”, p. 27.
- Timothy L. Thomas, The Dragon’s Quantum Leap: Transforming from a Mechanized to an Informatized Force (Fort Leavenworth, KS: Foreign Military Studies Office, 2009), p. 8-12. Qiao Liang e Wang Xiangsui, Unrestricted Warfare, trad. Foreign Broadcast Information Service (Beijing: PLA Literature and Arts Publishing House, 1999), p. 206-16. Unrestricted Warfare não é uma doutrina estratégica oficial do ELP, mas oferece uma estrutura para os debates teóricos que serviram de base à doutrina do ELP desde 1999.
- O’Dowd e Waldron, “Sun Tzu for Strategists”, p. 34.
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- Ibid., p. 125; Harro Von Senger, The Book of Strategems: Tactics for Triumph and Survival, trad. e ed., Myron B. Gubitz (New York: Viking Penguin, 1991), p. 215.
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- Sun, The Wiles of War, p. 189.
- Ibid., p. 43; Von Senger, The Book of Strategems, p. 67.
- Johnson, China’s Grand Strategy for Global Data Dominance, p. 3.
- Pottinger, “Beijing’s American Hustle”, p. 105.
- Sun, The Wiles of War, p. 10; Von Senger, The Book of Strategems, p. 33.
- Sun, The Wiles of War, p. 51; Von Senger, The Book of Strategems, p. 75.
- Sun, The Wiles of War, p. 133; Von Senger, The Book of Strategems, p. 233.
- Sun, The Wiles of War, p. 251.
- O’Dowd e Waldron, “Sun Tzu for Strategists”, p. 29-30.
- Sun, The Wiles of War, p. 105; Von Senger, The Book of Strategems, p. 171.
- Sun, The Wiles of War, p. 195.
- Gary J. Bjorge, Moving the Enemy: Operational Art in the Chinese PLA’s Huai Hai Campaign, Leavenworth Paper no 22 (Fort Leavenworth, KS: Combat Studies Institute Press, 2003), p. 5.
- Ibid., p. 1.
- Ibid., p. 21-25.
- Ibid., p. 118-19.
- Ibid., p. 159-60.
- Ibid., p. 269.
- Qiao e Wang, Unrestricted Warfare, p. 2.
Rob Hafen é oficial da reserva remunerada do Exército dos EUA e professor assistente do Departamento de Táticas do Exército na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército dos EUA. É mestre em Arte e Ciência Militar pela U.S. Army School of Advanced Military Studies do Exército dos EUA. Dedica-se atualmente ao curso de Estudos de Segurança na Kansas State University, onde obterá o título mais avançado na área.
Recomenda
China’s Use of People’s War Theory in theSouth China Sea
Maj Calvin W. Taetzsch, Exército dos EUA
Em 3 de agosto de 2016, em resposta à decisão da Corte Permanente de Arbitragem contra as reivindicações chinesas no Mar do Sul da China, a China alertou a comunidade internacional sobre seus preparativos para uma “guerra popular no mar”. Essas declarações recentes ressaltam a relevância deste estudo e enfatizam a importância de um exame minucioso do emprego da teoria da guerra popular pela China. Esta monografia utiliza uma abordagem estruturada e focada em um estudo de caso do impasse do recife de Scarborough, de 2012, para responder a seis perguntas de pesquisa. A primeira é: como é uma “guerra popular no mar”? A segunda, quais elementos da teoria da guerra popular estão presentes na estratégia militar chinesa? A terceira, qual é a relação entre as limitações militares da China e sua busca pela teoria da guerra popular no Mar do Sul da China? A quarta pergunta é: como a teoria da guerra popular produz efeitos militares no Mar do Sul da China? A quinta, qual é a relação entre a condenação internacional e o uso da teoria da guerra popular pela China no Mar do Sul da China? A sexta, que estímulos sociais, políticos ou econômicos impulsionam o uso da teoria da guerra popular pela China? Para ler on-line, acesse https://cdm16040.contentdm.oclc.org/digital/collection/p4013coll3/id/3660.
The Effectiveness of Mao’s Influence Operations at the Beginning of the Chinese Civil War
Maj Ronald D. Mildren Jr., Exército dos EUA
À medida que os líderes políticos dos EUA buscam encerrar a guerra mais longa de sua história, haverá muita reflexão sobre como as organizações militares dos EUA executaram as operações de contrainsurgência. Muitas dessas lições aprendidas serão captadas e codificadas em doutrina de contrainsurgência futura. No entanto, as duas lições mais fundamentais dentre as muitas aprendidas pelo Exército dos EUA no combate às insurgências no Iraque e no Afeganistão são que não há duas insurgências iguais e que o apoio da população é necessário para o sucesso. Para ler on-line, acesse https://cdm16040.contentdm.oclc.org/digital/collection/p4013coll3/id/3158.
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