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O Emprego das Forças Armadas Mexicanas no Combate ao Crime Organizado

Ten Cel Marcelo Neival Hillesheim de Assumpção, Exército Brasileiro

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O mundo globalizado do século XXI tem testemunhado um progresso sem precedentes em diversas áreas do conhecimento, o qual tem ensejado a popularização dos novos recursos tecnológicos disponíveis e dos grandes avanços científicos alcançados. Simultaneamente, antigos atores que ameaçam sociedades e o poder público dos Estados Nacionais renovam seu perfil e potencializam suas capacidades de atuação1.

Dentro desse contexto, o crime organizado, em particular o narcotráfico, tem sido um elemento fundamental no comprometimento da qualidade da democracia em muitos países do mundo, sobretudo na América Latina, região que lidera, em nível global, a produção de drogas destinadas aos cinco continentes2.

Assim sendo, o combate ao crime organizado transnacional tem ganhado destaque na agenda política em parte significativa das nações do mundo, as quais têm assistido à superação das capacidades operativas de organizações criminosas com relação às forças de segurança pública nos níveis regionais, o que tem ensejado o emprego das Forças Armadas como recurso para fazer frente às chamadas novas ameaças3.

Na América Latina, em particular, a maioria das nações utiliza tais instituições em labores de segurança pública, desviando-as de suas missões precípuas de defesa externa e, em geral, sem atingir resultados expressivos e nem baixar os indicadores de violência doméstica4.

Dessa forma, este trabalho analisará o emprego das Forças Armadas no combate ao crime organizado, tendo como referência o caso do México, buscando destacar ensinamentos sobre o tema que sirvam de parâmetro para países onde tal empresa ainda não está sistematizada.

Antecedentes

O cultivo de drogas para fins recreativos no México, em particular ópio e maconha, remonta à segunda metade do século XIX, em uma época em que a produção, o comércio e o consumo ainda não figuravam como ilegais. O principal destino de tais produtos eram os Estados Unidos da América (EUA)5.

As exportações mexicanas de narcóticos passaram à ilegalidade como resultado das proibições advindas em várias nações e, em particular, nos EUA, após as conferências mundiais sobre o tema ocorridas em Xangai (1909) e em Haia (1912). Entretanto, tal comércio não sofreu descontinuidade devido à cadeia produtiva e de comércio que havia se consolidado após anos de operações lícitas e que já envolvia parcela considerável da população de Estados mexicanos como Sinaloa, Baixa Califórnia e Sonora6.

Comerciantes e produtores que insistiram em permanecer inseridos no negócio dos narcóticos passaram então ao “status” de traficantes de drogas. Com as restrições legais, o preço dos entorpecentes subiu, o que atraiu a atenção de quadrilhas de criminosos dedicados a ilícitos diversos, os quais perceberam o potencial dessa nova e lucrativa atividade7.

Dessa forma, consolidou-se uma efetiva cadeia produtiva de narcóticos no país. A proibição da produção e do comércio das drogas passou a vigorar no México na década de 1920; contudo, não surtiu o efeito desejado, pois valeu-se, em grande medida, do fato de a nação estar atravessando uma fase de turbulências no campo político e de possuir uma presença estatal e federalismo ainda incipientes.

A fragilidade da nação mexicana naquele período, agravada por uma revolução iniciada em 1910, a qual consumiu grande energia do governo central durante anos, fez com que o tema do narcotráfico se tornasse periférico no debate político de então, não recebendo os recursos públicos necessários e a atenção devida8.

Cabe destacar que o tráfico de drogas no México sempre esteve ligado às dinâmicas dos EUA, tanto devido às demandas desse país, maior consumidor de drogas do mundo, quanto pelas políticas de combate e repressão aos narcóticos empreendidas pelos seus governos. Dessa forma, os EUA, há décadas, conduzem uma política externa vigorosa com relação aos países produtores e de trânsito de drogas, exigindo destes medidas e ações amplas no combate ao crime organizado9.

Assim sendo, a partir do final da década de 1940, diante das pressões estadunidenses por uma política mais efetiva no combate ao crescimento e fortalecimento do narcotráfico, o governo mexicano passou, em um primeiro momento, a implementar medidas repressivas mais contundentes contra os grupos criminosos, o que lhe permitiu constatar o nível de infiltração do poder público pelo crime organizado, sobretudo nas esferas estaduais e municipais10.

Dentro desse contexto, em um segundo momento, o governo mexicano passou a pactuar com alguns líderes criminosos, em busca de alcançar a estabilidade do país no âmbito da segurança pública e manter o narcotráfico sob controle. As atividades ilícitas seriam combatidas de forma seletiva contra os grupos delitivos não enquadrados pelo “acordo” ou que violassem os seus termos11.

Essa dinâmica vigorou durante algumas décadas e permitiu ao crime organizado penetrar ainda mais no Estado e corromper estruturas do poder público, comprometendo em parte a efetividade institucional e os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Os cartéis ganharam um grande poder e ampliaram sua esfera de influência, mantendo, entretanto, um perfil discreto em suas operações. O Estado, por seu turno, teve seu poder de atuação nesse âmbito diminuído e se debilitou12.

A partir da década de 1980, a dinâmica do narcotráfico no México passou por grandes mudanças devido: à entrada da cocaína no rol de entorpecentes traficados para os EUA pelos cartéis mexicanos, à fragmentação e atomização dos grupos delitivos no país, à quebra dos acordos velados entre o governo e os traficantes e ao aumento da violência generalizada13.

O perfil discreto de outrora deu lugar a ações criminosas que passaram a desafiar frontalmente o Estado, o que, aliado às disputas armadas crescentes entre cartéis rivais, elevou a sensação de insegurança e evidenciou a dimensão da problemática das drogas no país e o poder alcançado pelas organizações delitivas. O governo mexicano, pressionado de forma crescente pelos EUA, viu-se, então, obrigado a empreender medidas mais contundentes para tentar resolver a questão.

Nesse ínterim, o México aumentou o emprego de suas Forças Armadas, o qual já ocorria desde 1938, de forma episódica e coadjuvando com outras agências estatais. As primeiras missões cumpridas visavam a destruições de locais de cultivo de maconha e papoula (matéria-prima do ópio), captura de líderes de cartéis, ocupação de postos na Procuradoria General de la República (instituição responsável pelo combate às drogas no nível federal), entre outras14.

No final do governo de Vicente Fox (2000/2006), a persistência de altos níveis de criminalidade, não obstante as ações estatais, fez com que o Presidente, a partir do penúltimo ano de seu mandato, aumentasse o emprego das Forças Armadas no combate ao narcotráfico. Para isso, baseou-se também no argumento de que não seria possível obter bons resultados nessa empreitada utilizando instituições policiais ineficazes e com alto grau de penetração pelo crime organizado15.

As Forças Armadas mexicanas, que já possuíam largo histórico de emprego episódico em operações de defesa interna e segurança pública, passaram, então, a envolver-se cada dia mais no confronto direto com os poderosos cartéis de drogas. Tal emprego foi definitivamente sistematizado a partir do mandato do Presidente seguinte, Felipe Calderón (2006/2012)16.

A força militar do Estado de Michoacán, no México, participante da guerra contra o narcotráfico. (Foto: Diego Fernández/Agencia de Fotografía AP México)

O Emprego Sistemático das Forças Armadas Mexicanas no Combate ao Crime Organizado

A partir de 2006, as Forças Armadas mexicanas passaram a desempenhar seu novo papel no país, quando a corrupção pelo narcotráfico já estava fortemente disseminada entre elementos do governo (em todos os níveis), do setor privado e da sociedade civil. A captura parcial do Estado mexicano pelo crime, aliada à baixa governabilidade em algumas partes do território nacional, conformou um cenário de extrema complexidade, no qual os militares teriam de combater diariamente um “adversário sem cara” entremeado na população civil e imiscuído com o poder público17.

Nesse contexto, o Presidente Felipe Calderón propagou que o país estava declarando guerra contra o narcotráfico. Assim, as Forças Armadas mexicanas passaram a executar operações chamadas de alto impacto contra o crime organizado, o qual já dominava algumas áreas do país, em particular, as de cultivo de drogas e a porção norte do território nacional, de onde saem as rotas em direção aos EUA18.

Diante dessa sensível tarefa, as Forças Armadas tiveram de adaptar parcialmente seus equipamentos e seus adestramentos para cumprirem missões que não correspondiam aos seus empregos doutrinários. Logo, materiais como veículos blindados mais vocacionados para emprego policial foram adquiridos, em detrimento de veículos de emprego bélico, dando início a um processo que o General Cienfuegos, então Secretário de Defesa Nacional do México (cargo equivalente ao de Ministro da Defesa no Brasil), chamou de “desnaturalização” e “desprofissionalização” de tais instituições19.

As ações do poder público buscaram, nesses seis anos, atingir de forma repressiva os cartéis de drogas sem a adoção de uma estratégia integral, empregando outros componentes estatais, em busca de realizar ações socioeconômicas para fomentar o progresso da sociedade, diminuindo a atratividade do ingresso no crime.

O emprego das Forças Armadas focou principalmente em ações como: bloqueio de vias urbanas e rurais para inspeção de veículos e pessoas; busca e destruição de plantações e laboratórios de produção de drogas; patrulhamento em áreas urbanas; captura de criminosos, etc.

O mandato presidencial seguinte, do Presidente Enrique Peña Nieto (2012/2018), com base nas lições aprendidas na gestão anterior, em particular em relação aos desgastes com a mídia e com os defensores dos direitos humanos (DH), deu um nome mais amigável à atuação das tropas, que passariam a realizar operações para reduzir a violência e alcançar um “México em Paz”20.

Desde o início dessa estratégia, organismos de direitos humanos nacionais e internacionais, como, por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, têm monitorado, de forma cerrada, as operações das Forças Armadas e feito denúncias contra militares por violação de tais direitos, o que fez com que o governo determinasse extremo rigor em relação à apuração desses casos, diminuindo um pouco o ímpeto das tropas no cumprimento de suas missões.

Somente a organização The Washington Office on Latin America (WOLA) denunciou que, entre 2012 e 2016, ocorreram 505 aberturas de processos investigativos sobre violações dos DH, entre os quais casos de tortura, desaparições forçadas e outros crimes (veja a figura 1)21.

Figura 1. Violações aos DH Cometidos por Militares, de 2012 a 2016. (Fonte: The Washington Office on Latin America (WOLA), Informe de Investigación: Justicia Olvidada, noviembre de 2017, https://www.wola.org/es/analisis/informe-de-wola-justicia-olvidada-la-impunidad-de-las-violaciones-derechos-humanos-cometidas-por-soldados-en-mexico/. Imagem adaptada e traduzida por Military Review)

Ainda no âmbito do Direito, o México adotou um novo sistema de justiça penal acusatório, que entrou em vigor em 2016, alterando alguns procedimentos dos militares no âmbito da segurança pública. Ademais, no ano de 2017, uma lei de segurança interior foi votada e aprovada no país, buscando atender ao propósito de dar segurança jurídica aos militares das Forças Armadas no combate ao crime. O fato é que, em ambos os casos, as leis não contemplaram as principais necessidades dos militares, que seguem em suas tarefas sem o devido amparo legal, o que afeta negativamente o desempenho nas operações, bem como a confiança e o moral das tropas22.

No México, ocorreu o processo inverso ao do Brasil. Neste último, os militares envolvidos em ocorrências durante operações deixaram de ser submetidos à justiça civil e passaram à justiça militar (Lei 13.491/2017). Na nação mexicana, ocorreu o contrário, pois, desde 2011, os militares deixaram de ser submetidos à justiça militar e passaram à justiça civil. Tal alteração foi consequência da pressão de órgãos de direitos humanos por conta de acusações de que inúmeras violações pretéritas deixaram de ser devidamente apuradas.

A distribuição geográfica dos cartéis de drogas mexicanos também constitui um aspecto que vem trazendo dificuldades para as ações do poder público, visto que seus limites de atuação são cambiantes e favorecem o confronto entre criminosos, aumentando a sensação de insegurança na população, elevando os indicadores de violência e dificultando a atuação das Forças Armadas (veja a figura 2)23.

Figura 2. Área de Atuação dos Principais Cartéis de Drogas Mexicanos, em 2015. (Fonte: US Department of Justice/Drug Enforcement Administration (DEA), National Drug Threat Assessment October 2015. Imagem adaptada e traduzida por Military Review.)

A flutuação desses limites ocorre devido à dinâmica instável do controle territorial pelos cartéis, os quais, ao longo dos últimos anos, têm passado por associações e dissociações, o que, além de ocasionar o surgimento de outros grupos delitivos, torna difícil identificar quais os arranjos vigentes na atualidade. Tantos os grupos criminosos mais recentes quanto os mais antigos disputam territórios entre si, além do domínio de locais de produção, venda e de passagem de entorpecentes para os EUA.

O emprego das Forças Armadas mexicanas foi concebido como de coadjuvância ao trabalho dos órgãos de segurança pública. Entretanto, a integração desejada para ações nesse âmbito é dificultada devido à existência de centenas de instituições policiais no país, dentre elas uma Polícia Federal, uma polícia para cada unidade da federação, uma polícia para cada município, além de polícias auxiliares, que fazem a segurança de empresas, comércios e outras entidades privadas. Tais instituições constituem um efetivo aproximado de 330 mil servidores24.

O número elevado de instituições policiais é um aspecto que torna mais complexa a coordenação nas operações interagências. Além disso, as polícias possuem alto grau de corrupção e envolvimento com os cartéis de drogas, servindo de alerta antecipado quando da deflagração de operações militares, protegendo criminosos, facilitando fugas, etc.

Outro fator que dificulta o combate ao crime organizado no México é o contato estreito e temporalmente já muito prolongado da população de certas regiões com os cartéis de drogas, o que gerou uma cultura de aceitação e promoção dos narcotraficantes e de suas atividades ilícitas, a chamada cultura narco, semelhante ao que já ocorre em algumas comunidades da cidade do Rio de Janeiro.

Militares mexicanos destruindo plantação de drogas. (Foto: Secretaría de la Defensa Nacional, México, 5º Informe de Labores 2016/2017)

Uma parte significativa dessa população é atraída por essa cultura, passando a cultivá-la e perpetuá-la, mesmo possuindo condições de desenvolvimento socioeconômico e possibilidade de ascensão social. Outra parcela da população não tem grande margem de escolha, pois é subjugada e obrigada a trabalhar para o crime em atividades diversas, dentre as quais se destaca o cultivo das lavouras de drogas, em particular nos Estados de Guerrero, Durango, Sinaloa e Chihuahua.

Com relação à composição dos cartéis, cabe registrar o número elevado de militares da reserva, ex-militares e militares da ativa das Forças Armadas que têm, ao longo das últimas décadas, se incorporado às fileiras do crime, reforçando os quadros de tais grupos e trazido ainda mais dificuldades para o seu combate.

O Cartel de los Zetas é um exemplo de grupo delitivo com grande quantidade de militares, inclusive, de tropas especiais mexicanas, como as pertencentes aos Grupos Aeromóveis, das Forças Especiais e da Brigada de Fuzileiros Paraquedistas. É importante destacar que muitos desses antigos membros das tropas de elite do país foram treinados em operações antidrogas e antiterroristas pelos EUA25.

Diante de um cenário tão complexo, os governos dos Presidentes Felipe Calderón e Penha Neto não lograram empreender uma ação integral de combate ao crime organizado, agregando medidas efetivas em outras áreas com vistas a diminuir os indicadores de violência no país; o número de homicídios, por exemplo, segue elevado, como se pode verificar na figura 3. Esse insucesso tem extrapolado as fronteiras nacionais, trazendo inclusive desgastes no âmbito das relações internacionais com os EUA26.

Figura 3. Número de Homicídios no México de 1997 até Junho de 2018. (Fonte: Semáforo Delictivo, http://www.semaforo.mx/content/semaforo-de-ejecuciones. Imagem adaptada e traduzida por Military Review.)

Consequências para as Forças Armadas Mexicanas de seu Emprego Sistemático no Combate ao Crime Organizado

Desde o início do emprego sistemático das Forças Armadas no combate ao crime organizado já se passaram mais de 12 anos, tempo considerável, que permite avaliar a efetividade de tal medida, bem como perceber as consequências para o instituto armado do país.

O longo período de emprego sistemático das Forças Armadas mexicanas na segurança pública vem impactando de forma negativa tais instituições, comprometendo em parte sua aptidão para cumprir com sua destinação constitucional, além de afetar os militares e suas famílias.

A rotina e a frequência com que os militares se deslocam para outras guarnições para participar de operações de combate ao narcotráfico têm trazido, em alguns casos, desajustes em suas vidas privadas e problemas de ordem familiar. Além disso, é um dos fatores responsáveis pelo número significativo de deserções nas Forças Armadas do país.

Tais instituições também registram inúmeros casos de corrupção e envolvimento de militares com o crime, ao longo dos últimos anos. Ademais, têm sido comuns os casos de violações dos direitos humanos e práticas ilegais durante operações, como apropriação de material, armas e dinheiro apreendidos; execuções de presos; e desaparições forçadas, entre outras27.

Por consequência, o número de militares que respondem a processos judiciais é elevado, não somente devido a desvios de conduta como os mencionados, mas também devido a situações em que as ações dos militares em operações são mal interpretadas ou transitam nos limites do ordenamento jurídico que lhes “ampara”.

Algumas supostas violações dos direitos humanos carecem de sustentação firme e demonstram que os criminosos se valem do ardil de realizar acusações infundadas, por intermédio da população, para provocar ações dos organismos de direitos humanos contra os militares, buscando desgastar a imagem da instituição e o moral da tropa28.

Casos de envolvimento de militares com o crime já ocasionaram a extinção de unidades, como foi o caso do 65o Batalhão de Infantaria (Guamúchil, Sinaloa), no qual se verificou que parte significativa do efetivo estava corrompida e vinculada com traficantes. Os demais integrantes do efetivo, contra os quais não foram constatados desvios de conduta, foram dispersos por várias outras organizações militares do país29.

Outro aspecto relevante é o fato de que as gerações de militares mais jovens, saídos das escolas de formação, estão chegando às suas unidades e sendo empregados de imediato em operações contra o crime organizado, o que tem gerado a perda parcial de seu perfil de militar das Forças Armadas, preparado para ações bélicas e, por consequência, o surgimento de uma vocação voltada para a atividade policial, configurando o que foi denominado pelo Gen Cienfuegos de desnaturalização e desprofissionalização dessas instituições, conforme já mencionado.

As exigências das complexas tarefas relacionadas com a segurança pública no México têm provocado uma reestruturação parcial de suas Forças Armadas, o que pode ser observado com a criação de inúmeras unidades de Polícia Militar nos últimos anos, com a requalificação de militares do exército para ocuparem cargos nessas unidades e com a priorização de adestramentos com vistas a combater narcotraficantes.

A compra de material de emprego militar voltado para o uso policial, em detrimento do voltado para fins bélicos, por conta de seu emprego prioritário em operações de segurança pública, é outra consequência já observada e que pode, ao longo do tempo, comprometer as capacidades inerentes às Forças Armadas e desnaturalizar as instituições cujo propósito principal é a defesa da pátria.

Essa situação é uma das que caracteriza o paradoxo com o qual se enfrentam as Forças Armadas quando são empregadas em ações de segurança pública. Se elas preservam seu adestramento, doutrina e material exclusivamente para fins bélicos, correm o risco de serem ineficientes ou cometerem excessos contra cidadãos de seu país, sejam eles envolvidos ou não com o crime.

Por outro lado, à medida que as Formas Armadas flexibilizam sua natureza, em busca de adaptarem seu adestramento, doutrina e material às demandas das operações de perfil policial, próprias da segurança pública, correm o risco de se desvirtuarem com relação ao desempenho de suas missões precípuas de defesa nacional.

Militares mexicanos atuando com policiais federais no patrulhamento de estradas. (Foto: Secretaría de la Defensa Nacional, México, 6º Informe de Labores 2017/2018)

Refletindo sobre o Problema do Crime Organizado na Atualidade

O emprego das Forças Armadas mexicanas no combate ao narcotráfico é mais um caso comum na atualidade em que o poder público de um país, diante do fenômeno das já mencionadas novas ameaças, apresenta sérias dificuldades em estruturar corretamente o problema apresentado, formulando, por consequência, soluções inadequadas para o mesmo.

O modelo de enfrentamento do crime organizado transnacional, como é o caso do México e de muitos outros países, ainda tem por base a perspectiva de que as ameaças à segurança nacional são da alçada das Forças Armadas e as ameaças à segurança pública são da alçada das forças policiais. Como o desafio apresentado se enquadra em uma zona intermediária entre tais campos, o poder público não consegue compreender o fenômeno em sua plenitude, tampouco formular políticas públicas efetivas30.

O enfrentamento de estruturas delitivas de tamanho grau de complexidade sugere que se deva encontrar uma categoria intermediária, em que uma nova taxonomia se faz necessária para enquadrar o problema de forma adequada, visto que os carteis mexicanos, no caso já descrito, demonstram a incapacidade das forças de segurança pública do país em combatê-los. Estima-se que organizações como a de Sinaloa, por exemplo, já possuam operações em mais de 40 países. O Primeiro Comando da Capital (PCC) do Brasil, da mesma forma, também já estende suas ações a outras nações sul-americanas.

As Forças Armadas tradicionais, por sua vez, se veem limitadas em sua liberdade de ação no combate a tais grupos, condicionadas por um sem-número de regras, princípios e ordenamentos jurídicos, os quais, em seu conjunto, ilustram a verdadeira assimetria existente entre as capacidades das forças legais e das estruturas criminosas.

A problemática do crime organizado transnacional é tão grave que teóricos já mencionam a possibilidade de “guerras criminais”, nas quais Estados aplicariam seu poder nacional contra grupos criminosos em regiões onde o poder público perdeu completamente sua capacidade de ação, gerando enclaves em grandes centros urbanos (denominados black spots) dentro dos quais o poder criminoso regularia as dinâmicas sociais, criando um Estado paralelo31.

Ainda que os grupos criminosos não sejam considerados atores políticos, o efeito de suas atividades gera consequências políticas nacionais e internacionais que, por sua vez, têm o potencial de gerar conflitos de maior intensidade e desequilíbrios na ordem internacional32.

Cabe destacar que a aplicação do poder coercitivo do Estado, seja por intermédio das forças de segurança pública ou das Forças Armadas, constitui o empenho em apenas um dos vetores que devem orientar o combate ao crime organizado. Esforço de igual intensidade deve ser aplicado para debilitar o patrimônio e a economia dos grupos delitivos, visto que esses são os instrumentos que viabilizam a corrupção dos agentes do Estado e a ampliação da influência dos criminosos no campo político.

Logo, as políticas públicas de enfrentamento ao crime organizado devem buscar uma abordagem integral e multidisciplinar do problema, seguindo a lógica do modelo aplicado pelas Nações Unidas quando de sua atuação em Estados falidos ou com graves comprometimentos na área de segurança, onde os componentes militar e policial buscam criar um ambiente seguro e estável para que o componente civil possa reestruturar as funções públicas inexistentes ou debilitadas e promover o progresso, diminuindo assim o poder de atração do crime33.

Helicóptero militar mexicano lançando herbicida para destruir plantações de drogas em lugares de difícil acesso. (Foto: Secretaría de la Defensa Nacional, México, 5º Informe de Labores 2016/2017 )

Conclusões

As Forças Armadas mexicanas têm desempenhado um papel de alta relevância no combate ao crime organizado no país ao longo dos últimos 12 anos, fruto de seu espírito de cumprimento de missão, abnegação, combatividade, profissionalismo e busca pela atuação em conformidade com os direitos humanos. Entretanto, todo seu empenho não tem sido suficiente para abaixar os indicadores de violência para níveis aceitáveis.

A sociedade civil do país tem feito críticas ao Estado por não lograr estabelecer uma coordenação interinstitucional eficiente que seja capaz de unir Órgãos de Inteligência, Secretaria de Fazenda, Sistemas de Justiça, Ministério Público, Forças Armadas, etc., em busca de obter os resultados desejados em prol da melhora da segurança pública o que, de certa forma, leva ao descrédito não somente o poder público de maneira geral, mas em particular, o instituto armado nacional.

A ação governamental mexicana não tem contemplado de forma efetiva uma ação integral e multidimensional no combate ao crime organizado, deixando para as Forças Armadas ações focadas prioritariamente na dimensão física do problema, o qual não é atingido em suas dimensões humana e informacional, dificultando a obtenção de resultados mais expressivos.

A despeito do empenho do governo mexicano no combate ao crime organizado, os índices de violência no país seguem altos. O ano de 2017 foi considerado um dos mais violentos das últimas décadas. O número de homicídios dolosos nesse ano, por exemplo, foi de 25.339 de habitantes, quase o dobro de dez anos antes (2007), que foi de 10.25334.

Os problemas de segurança pública presentes na América Latina e a não percepção de um inimigo externo por grande parte das nações da região induzem os poderes públicos estatais a empregarem ainda mais suas Forças Armadas em missões de ordem interna. Entretanto, a atuação sistemática delas em atividades policiais caracteriza o emprego inadequado das instituições que deveriam ser preservadas pelo fato de serem o último recurso do Estado diante de situações extremas, de calamidades ou de enfrentamento de inimigos externos e internos muito bem definidos.

Essa medida expõe os militares ao assédio e à corrupção perpetrada pelas organizações criminosas, as quais invariavelmente logram cooptar alguns servidores, fragilizando as instituições e comprometendo a credibilidade do instituto armado diante da sociedade. Tal corrupção é facilitada pelo fato de os militares atuarem em um cenário de incerteza e desamparo jurídico, sem perceber, na maioria das vezes, um envolvimento multidimensional do poder público na solução do problema.

As políticas de combate à problemática das drogas que não envolvam de forma integral todos os setores do poder público (abordagem integrada) dificilmente lograrão resultados expressivos, pois a degeneração do tecido social, fruto da cultura narco, aliada a baixos indicadores socioeconômicos, oferece as condições ideais de florescimento de todo o tipo de problemas sociais, onde a delinquência organizada será apenas mais um dos efeitos percebidos.

A experiência mexicana demonstrou que mesmo ações repressivas exitosas contra alguns cartéis, com grandes apreensões de armas e entorpecentes e prisões de líderes, não foram capazes de descontinuar o fluxo de drogas para os EUA e não permitiram o registro de variação expressiva do seu preço no varejo e nem na pureza desses produtos. Logo, a prática recorrente de eleger os líderes de organizações criminosas como centro de gravidade em exercícios e operações militares deve ser repensada para cada caso específico.

Finalmente, o empenho do governo mexicano ao longo das últimas décadas — com a orientação e apoio dos EUA — em atacar frontalmente o crime organizado, sem a obtenção de resultados expressivos, é um indicador de que o foco principal das políticas públicas na atualidade deve ser principalmente na demanda (consumo) de entorpecentes e não na sua oferta.


Referências

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  32. Visacro, As Áreas Não Governadas.
  33. Ibid.
  34. “Reporte Sobre Delitos de Alto Impacto: Diciembre 2017”, Observatorio Nacional Ciudadano Seguridad, Justicia y Legalidad Año 4, no. 11 (Diciembre 2017), última modificação em 6 fev. 2018, acesso em 8 mar. 2018, http://onc.org.mx/wp-content/uploads/2018/02/PDF_dic17_final.pdf.

O Ten Cel Inf QEMA Marcelo Neival Hillesheim de Assumpção é atualmente instrutor do curso de Maestría en Dirección Estratégica, Escuela Superior de Guerra, no México, onde também obteve o grau de mestrado. Trabalhou em diversas funções de corpo de tropa no Exército Brasileiro, na Missão de Paz da ONU no Haiti e na Operação de Pacificação Arcanjo, no Rio de Janeiro. Possui os cursos: Básico Paraquedista, Mestre de Salto, Operações na Selva e Avançado de Inteligência, entre outros cursos e estágios da carreira. É especialista em Política e Estratégia pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra do Rio de Janeiro.

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Segundo Trimestre 2019