Military Review

 

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Falta de vontade

Como a Força Totalmente Voluntária condicionou o público estadunidense

 

Maj Christopher J. Parker, Exército dos EUA

 

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Recrutas recitam o juramento de alistamento, em 27 de março de 2022, em Miami

Pobre do governo que, confiando em políticas indiferentes e numa política militar restrita, enfrentar um inimigo que, como os elementos indomáveis, não conhece qualquer outra lei a não ser a sua própria força.NT1

—Carl von Clausewitz, Da guerra

 

Oano fiscal de 2022 marcou o pior ano de recrutamento do Exército dos Estados Unidos da América (EUA) desde o início da Força Totalmente VoluntáriaNT2 (all-volunteer force, AVF) em 1973.1 O Exército não atingiu sua meta de 60 mil recrutas, ficando aquém desse número em quase 15 mil, o que levou a uma redução de 21 mil no efetivo em relação ao ano anterior e fez com que a Secretária do Exército, Christine Wormuth, sugerisse a necessidade de que reservistas ou membros da Guarda Nacional preenchessem as vagas da ativa.2 Isso ocorreu apesar de o Exército ter gasto quase 38% do seu orçamento para o ano fiscal de 2022 — cerca de USD 66 bilhões — com pessoal.3 Isso também ocorre apenas três anos após a criação do Office of the Chief Army Enterprise Marketing, um escritório centralizado encarregado de coordenar a estratégia nacional de marketing e publicidade do Exército para apoiar os requisitos de recrutamento de uma AVF.4 Desde então, o Exército continuou a investir fortemente em recrutamento, retenção e marketing, com um pedido orçamentário para o ano fiscal de 2024 que inclui aproximadamente USD 390 milhões para marketing e publicidade e USD 290 milhões para recrutamento, incluindo o bônus de USD 50 mil, o maior já oferecido a recrutas iniciais.5 Embora o alto custo da AVF esteja bem documentado e seja frequentemente debatido, menos discutido é o que esse valor consegue comprar e o efeito que tem sobre a capacidade da nação de travar uma guerra.

NT1: Os trechos da obra Da Guerra foram extraídos da tradução do inglês para o português do CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle, a partir da versão em inglês de Michael Howard e Peter Paret.

NT2: Forças Armadas compostas totalmente de voluntários.

 

Estudar a AVF nesse contexto ajuda a determinar se esse método de guarnecer um Exército — incentivo pecuniário — é adequado para gerar uma força com credibilidade de combate para apoiar a Estratégia de Defesa Nacional. Tanto a Estratégia de Defesa Nacional quanto a Estratégia Militar Nacional deixam claro que, caso a dissuasão integrada falhe, as Forças Armadas dos EUA devem ser capazes de combater e vencer contra um adversário com poder de combate equiparado.6 Em outras palavras, o Exército deve ser capaz de prevalecer em combates em larga escala. Como demonstra o ano fiscal de 2022, se os incentivos relativamente lucrativos atrelados ao serviço militar voluntário não conseguem atender às necessidades de defesa durante a paz, serão suficientes na guerra? E não uma guerra qualquer, mas um combate prolongado e de alta intensidade contra um inimigo tecnologicamente capaz e, possivelmente, maior. Se não for, o que isso indica sobre a relação entre as Forças Armadas e a sociedade? E o que isso significa para a capacidade do país de travar grandes guerras?

As respostas a essas perguntas revelam que, apesar de seu investimento em pessoal, os 50 anos de AVF condicionaram grande parte do público estadunidense a evitar o serviço militar e, ao mesmo tempo, possibilitaram guerras de escolha que, por sua vez, apenas reforçaram o ceticismo do público em relação ao serviço militar. Basicamente, o conceito de efetivo totalmente voluntário deu origem a uma força pequena, mas profissional, em troca da aquiescência pública ao seu emprego no exterior. Com o passar do tempo, isso começou a minar o relacionamento entre a sociedade e suas Forças Armadas e teve um impacto significativo na determinação de quando e até que ponto a nação é capaz de travar uma guerra. Com o fim do serviço militar obrigatório, a AVF desmantelou a capacidade do Poder Executivo de, diretamente, aproveitar a população do país — um recurso, ou meio, essencial para a guerra — com a suposição de que uma combinação de incentivos e vontade nacional, ou ethos, atrairia recrutas suficientes para preencher as fileiras quando necessário. No entanto, ao condicionar o público estadunidense a acreditar que suas Forças Armadas não precisavam dele e que as guerras são, com frequência, travadas sob pretextos duvidosos em busca de interesses periféricos, a AVF reprimiu justamente a vontade necessária para voltar a utilizar os meios de que precisava. Isso, de fato, eliminou a população estadunidense do cálculo de decisão sobre quando travar guerra e sua contribuição à condução da guerra.

Como demonstram a história, a teoria estratégica e os acontecimentos contemporâneos, as grandes guerras são um teste da totalidade de meios e da força de vontade.7 A principal deficiência da AVF, sua tendência de separar a população das Forças Armadas, faz dela, em grande parte, um veículo inadequado e historicamente não comprovado para concentrar a força de vontade necessária para conduzir grandes guerras. Embora seja talvez viável para equipar um exército encarregado de conduzir operações de contingência limitadas e prolongadas, como as do Afeganistão e do Iraque, ou para a guerra curta e decisiva — sempre difícil de alcançar — sua propensão a deixar a população de lado significa que carece da profundidade necessária ao combate expedicionário em larga escala contra um adversário com poder de combate equiparado.8 Os formuladores de políticas encarregados de desenvolver a AVF reconheceram essa deficiência, e duas das primeiras salvaguardas criadas dentro e ao redor dela foram concebidas para manter o tecido conjuntivo entre a sociedade e suas Forças Armadas a fim de evitar a apatia nacional que poderia resultar de seu uso indevido no exterior: as Doutrinas Abrams e Weinberger. Dessa forma, essas doutrinas oferecem uma estrutura para avaliar como o emprego da AVF pode afetar a percepção do público sobre ela e o seu relacionamento com o público. Ambas as doutrinas reconheciam a centralidade da vontade popular, ou o que Carl von Clausewitz chamou de “violência, […] ódio e […] inimizade primordiais”, na determinação do escopo e caráter do conflito, e cada uma delas reconhecia o risco de que uma AVF pudesse se distanciar disso.9 Por isso, procuraram manter o combate como um assunto “nacional”, garantindo a adesão internamente e impedindo que a AVF fosse despachada de forma descuidada para o exterior. O uso dessas doutrinas para examinar como a AVF foi empregada durante a Operação Desert Storm e a Operação Iraqi Freedom permite entender como essas guerras muito diferentes condicionaram o público a evitar o serviço militar.

Creighton Abrams e o Exército Totalmente Voluntário da Guerra Fria

Surgido do descontentamento popular com a Guerra do Vietnã, o Congresso aprovou um projeto de lei que eliminou as convocações e fez a transição das Forças Armadas para uma AVF em setembro de 1971.10 Essa decisão passou por debates, e somente após invocar a moção de encerramento das discussões é que uma pequena maioria conseguiu impedir uma tentativa de obstrução por discursos prolongados e aprovar a legislação contestada.11 Tampouco foi aprovada por unanimidade pelo círculo interno do Presidente Richard Nixon. O Gen Lewis Hershey, assessor do Presidente para mobilização de mão de obra, pediu que ele vetasse a iniciativa, declarando: “A presunção de que a segurança nacional possa ser mantida por forças armadas disponibilizadas por incentivos pecuniários adicionais baseia-se em esperanças não sustentadas pela história dos EUA […] A mensagem incentiva aqueles que desejam ser dispensados das obrigações do serviço militar”.12 Apesar dessas objeções, Nixon assinou o projeto de lei, e a Lei 92-129 (Public Law 92-129) entrou em vigor em 28 de setembro de 1971.13 Depois que uma cláusula de extensão viabilizou a transição, o programa que gerou um suprimento ininterrupto de pessoal para as Forças Armadas na Guerra Fria desde 1948 terminou oficialmente em 1º de julho de 1973.

O Gen Creighton Williams Abrams Jr. (à direita), Comandante do Comando de Assistência Militar, Vietnã, prende uma faixa de campanha a uma bandeira de unidade durante uma cerimônia em 3 de janeiro de 1970 no Vietnã

Embora significativa, a transição para uma AVF no final da Guerra do Vietnã foi mais uma norma do que uma exceção. Ao longo da maior parte de sua história, os EUA contaram com uma força voluntária para compor suas Forças Armadas em tempos de paz, inchando as fileiras por meio da conscrição para a guerra e reduzindo-as logo em seguida.14 Entretanto, assim como hoje, os EUA não saíram da Guerra do Vietnã como a única superpotência em um mundo pacífico. Em vez disso, a ameaça representada pela União Soviética dominou o desenvolvimento e o projeto da Força. Internalizando as lições do Vietnã, os encarregados de desenvolver uma AVF que pudesse combater uma ameaça de adversários com poder de combate equiparado reconheceram a importância da vontade nacional em obter o apoio necessário para uma grande luta e, ao mesmo tempo, reconheceram sua capacidade percebida de manter a nação fora de envolvimentos desnecessários. Sob a doutrina que leva seu nome, o Gen Creighton Abrams, então Chefe do Estado-Maior do ExércitoNT3, criou um desses mecanismos para manter o relacionamento vital entre os EUA e seu Exército.

NT3: Equivalente a Comandante do Exército no Exército Brasileiro.

NT4: Por vezes, os capacitadores (enablers) podem ser entendidos como “multiplicadores do poder de combate”, por vezes, como “elementos em apoio”. Meios associados à Inteligência, Operações Psicológicas, Assuntos Civis, Operações Especiais, Guerra Eletrônica, Guerra Cibernética, dentre outros, são, frequentemente, citados como capacitadores, segundo uma perspectiva mais ortodoxa das operações de combate em larga escala.

Em sua essência, a Doutrina Abrams buscava manter a sociedade investida em seu Exército, preenchendo o vazio deixado pelas convocações com a reserva e a Guarda Nacional.15 Posicionou unidades de apoio e capacitadoresNT4 essenciais — engenharia, transporte, manutenção, suprimentos e outros — na reserva, de modo que as unidades de combate não pudessem ser desdobradas em massa sem eles. Isso conectava, inextricavelmente, os componentes da reserva e da ativa em uma relação de dependência mútua, que o então Secretário de Defesa Melvin Laird e, mais tarde, James Schlesinger, aperfeiçoariam ainda mais no Conceito de Força Total.16 Abrams esperava que a doutrina corrigisse a decisão controversa do Presidente Lyndon Johnson de combater na Guerra do Vietnã sem mobilizar a Guarda Nacional ou a reserva. Johnson recusou-se a convocar o componente da reserva em uma tentativa desesperada de evitar que a questão do Sudeste Asiático interferisse em seus esforços relacionados à Grande Sociedade internamente.17 Abrams queria corrigir isso tornando cada vez mais difícil que futuros presidentes enviassem forças para o exterior sem recorrer aos cidadãos-soldados no país. “Eles não vão nos enviar para a guerra novamente sem convocar os reservistas”, declarou.18 Era duplo o efeito pretendido.

O Cel Bruce Fister (à direita), Comandante da 435

Em primeiro lugar, Abrams pretendia usar o tempo de mobilização necessário para os desdobramentos da reserva para dar à Autoridade de Comando Nacional (National Command Authority, NCA) o espaço de que precisava para avaliar o caráter do conflito em que estava prestes a se envolver e para angariar o apoio popular necessário para conduzi-lo com sucesso.19 Nesse sentido, tornou-se um controle de fato sobre a capacidade do Presidente de mobilizar a força voluntária prematuramente sem uma avaliação prudente ou vontade nacional adequada. Em segundo lugar, ele se esforçou para manter a qualidade representativa de uma força conscrita, vinculando a AVF à população por meio de unidades da Guarda Nacional e da reserva espalhadas por cidades de todo o país.20 O Gen John Vessey, ex-Chefe da Junta de Chefes do Estado-Maior, lembrou a aversão de Abrams à formação de uma força voluntária isolada: “Não vamos construir um exército aqui no canto, em algum lugar. As Forças Armadas são uma expressão da nação. Se forem tiradas do contexto nacional, é provável que se deteriorem”.21 Esta última intenção, de tornar a AVF representativa do povo estadunidense, fez da Doutrina Abrams um componente importante da AVF. Ao alcançar e tocar uma vasta amostra representativa da nação sempre que o Exército marchasse para a guerra, a doutrina buscava garantir que o público estadunidense continuasse sendo uma parte interessada. As economias locais, as famílias e todos os distritos eleitorais teriam um interesse bastante real nas movimentações das Forças Armadas estadunidenses no exterior. Nesse sentido, a doutrina reconheceu a relação entre força de vontade e sacrifício nacional. A disposição para o sacrifício nacional serviria de medida para a força de vontade. Por um lado, o apoio público indicaria a força de vontade necessária para prevalecer em um grande combate ou, por outro lado, o clamor público impediria a nação de entrar em conflitos para os quais não tivesse a vontade de vencer. Embora tenha fracassado no final, a doutrina buscou preencher a lacuna cada vez maior entre os EUA e suas Forças Armadas voluntárias, conseguindo que o público compreendesse que a guerra significava sacrifício e que sua disposição ao sacrifício influenciaria diretamente quando e onde a nação entraria em guerra.

Jovens se registram para o serviço militar obrigatório em 5 de junho de 1917 na cidade de Nova York

Em 1989, às vésperas de seu primeiro teste real, cerca de 89% das companhias de manutenção do Exército, 90% de suas companhias de suprimentos e 67% de suas unidades de engenharia de combate e transporte estavam no componente da reserva.22 Na maior mobilização desde a Guerra da Coreia, mais de 62 mil membros da Guarda Nacional e mais de 35 mil reservistas foram convocados ao serviço ativo para ajudar a expulsar as Forças Armadas iraquianas do Kuwait.23 A Doutrina Abrams e o Conceito de Força Total fizeram, de fato, a transição do componente da reserva, que passou de estratégica para operacional, cumprindo a promessa de Abrams de garantir que a nação nunca mais entrasse em guerra sem ela. No entanto, entre sua criação em 1974 e a Operação Desert Storm em 1991, surgiu outra doutrina que buscava incutir prudência na tomada de decisão nacional a fim de preservar a confiança do público e evitar o uso indevido da AVF. Embora ambas as doutrinas pareçam ter passado com louvor nesse primeiro teste no Iraque, seu sucesso impressionante teve consequências não intencionais para as decisões subsequentes sobre quando usar a força no exterior e a percepção do público sobre seu papel.

A Doutrina Weinberger e a primeira Guerra do Golfo

Quando assumiu o cargo de Secretário de Defesa em 1981, Caspar Weinberger enfrentou desafios de recrutamento e retenção semelhantes aos que o Exército enfrenta atualmente e temia que a AVF não estivesse pronta para um confronto com a União Soviética.24 Os alistamentos iniciais e realistamentos caíram, assim como a qualidade dos recrutas, com apenas 60% dos candidatos tendo completado o ensino médio.25 Um forte defensor da iniciativa do Presidente Ronald Reagan para aumentar significativamente os gastos com defesa, Weinberger canalizou fundos consideráveis para melhorar a remuneração e os benefícios a fim de manter o tamanho relativo da AVF e, ao mesmo tempo, melhorar sua qualidade.26 Entre 1981 e 1987, os gastos com defesa aumentaram cerca de um terço, de USD 686,6 bilhões para USD 959,1 bilhões (em dólares de 2022), enquanto o número de militares da ativa só aumentou em 91.657.27 Esse investimento na qualidade do pessoal foi acompanhado por um investimento significativo em modernização, com o lançamento de várias armas novas, como o caça F-117 Stealth, o carro de combate M1 Abrams e o sistema de defesa antimísseis Patriot. Esses investimentos em modernização e profissionalização certamente fariam com que a maioria dos decisores ponderasse sobre quando e para onde enviar uma força tão cara para o exterior. Weinberger não era diferente e, com as lições do Vietnã ainda frescas, ele buscou uma estrutura para ajudar a NCA a percorrer o campo minado de possíveis e latentes conflitos da Guerra Fria.

Um ano após um carro-bomba matar 266 fuzileiros navais em Beirute, Weinberger esboçou seus seis testes para o emprego das forças dos EUA em um discurso de 28 de novembro de 1984 no National Press Club.NT5 Ao expor os princípios da Doutrina Weinberger, ele tentou restringir o uso indiscriminado da força, argumentando que os seguintes critérios deveriam ser atendidos antes de enviar a AVF para a guerra:

NT5: Organização profissional de jornalistas dos EUA.

Primeiro, os EUA não devem enviar forças para combater no exterior, a menos que o engajamento específico seja considerado vital ao nosso interesse nacional ou o de nossos aliados.

Segundo, se decidirmos que é necessário usar tropas de combate em uma determinada situação, devemos fazê-lo com convicção e clara intenção de vencer. Se não estivermos dispostos a empenhar as forças ou os recursos necessários para atingir nossos objetivos, não devemos empenhá-los de forma nenhuma.

Terceiro, se decidirmos enviar forças para combater no exterior, devemos ter objetivos políticos e militares claramente definidos.

Quarto, a relação entre nossos objetivos e as forças que empenhamos — seu tamanho, composição e disposição — deve ser continuamente reavaliada e ajustada, se necessário.

Quinto, antes que os EUA enviem forças de combate para o exterior, deve haver alguma garantia razoável de que teremos o apoio do povo estadunidense e de seus representantes eleitos no Congresso.

Sexto, por fim, o emprego das forças dos EUA em combate deve ser o último recurso.28

Embora não seja uma política oficial, a doutrina lança luz sobre a perspectiva do comandante mais antigo nomeado para liderar o Departamento de Defesa por mais de seis anos, e isso teve um impacto significativo na política de defesa e sobre os encarregados de elaborá-la por quase uma década após sua introdução.29

O primeiro, o segundo e o quinto testes de Weinberger são fundamentais para entender os riscos próprios de uma AVF, a importância da vontade nacional e os laços delicados entre os dois. O primeiro teste reconhece implicitamente a facilidade com a qual a NCA poderia enviar sua força voluntária para guerras de escolha sem provocar uma reação negativa no país. Esse foi um desafio contínuo para Weinberger, que se viu, com frequência, lutando contra o desejo do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council, NSC) por “aventuras cada vez mais extravagantes para nossas tropas. A ânsia do Estado-Maior do NSC para entrar em uma briga em algum lugar — qualquer lugar — aliada à sua aparente falta de preocupação com a segurança de nossas tropas [era terrível]”.30 Dessa forma, o teste pretendia evitar que um “presidente imperial” envolvesse a nação em conflitos que não fossem de vital interesse, pois, se isso acontecesse, Weinberger argumentava que a disposição para servir seria reduzida a níveis semelhantes aos observados durante a Guerra do Vietnã.31 Como observou o historiador Andrew Bacevich, “o Vietnã demoliu a noção de obrigação militar e levou à beira da extinção a tradição do cidadão-soldado. E persuadiu muitas pessoas de que a própria guerra — principalmente quando conduzida por generais estadunidenses obtusos a mando de autoridades civis ardilosas — havia se tornado um exercício de futilidade”.32 Envolvimentos posteriores em conflitos sobre interesses nacionais periféricos ou pouco claros apenas corroeriam o pouco do ethos de serviço militar que restava à população.

O segundo e o quinto testes de Weinberger estão relacionados à importância da vontade nacional. O segundo teste, “sem meias medidas”, homenageia a máxima de Clausewitz de que a guerra é um teste da totalidade de meios e da força de vontade. Aqui, Weinberger enfatiza que, se a nação decidir enviar tropas para o combate, deverá estar preparada para mobilizar todos os recursos disponíveis, inclusive a população e a economia, se necessário. Em outras palavras, para onde as tropas vão, a nação as segue. Nesse sentido, suas semelhanças com a Doutrina Abrams se tornam mais evidentes. O combate em geral não deve ser considerado uma operação de economia de meios, pois a vitória geralmente depende da capacidade do governo de reunir os recursos necessários e da disposição da população para apoiar essa mobilização por meio dos sacrifícios que a acompanham. Qualquer coisa aquém disso corre o risco de ceder a vantagem estratégica a um inimigo com mais vontade desde o início.

O quinto teste de Weinberger reconhece diretamente a importância da vontade nacional e do apoio popular nas decisões relativas ao combate no exterior. Assim como a Doutrina Abrams, que buscava tirar proveito indiretamente da adesão popular recorrendo às unidades da Guarda Nacional e da reserva em todos os distritos eleitorais, a Doutrina Weinberger faz um apelo explícito pela avaliação desse apoio desde o início e de mudanças nele durante o combate. Entrar em um combate sem esse apoio assemelha-se a neutralizar ou ignorar o componente da famosa trindade de Clausewitz que ele considerava mais revolucionário em sua época: o povo.33 Embora uma avaliação inicial do apoio popular seja fundamental para decidir sobre dar início ou juntar-se a um conflito, também cabe aos líderes da nação manter esse apoio durante a guerra. Na Segunda Guerra Mundial, esse apoio era tangível, pois os líderes pediam aos estadunidenses que apoiassem a guerra de várias maneiras, inclusive comprando títulos, cultivando uma horta da vitória, partilhando carros e contribuindo para a coleta de sucata. Em conflitos mais recentes, como a Operação Desert Storm, o sacrifício civil evoluiu para o simbolismo, com os estadunidenses usando fitas amarelas e outros objetos patrióticos em uma demonstração de apoio moral às tropas. Mais tarde, após os ataques de 11 de setembro de 2001, isso se inverteu, e os estadunidenses foram incentivados a se comportar como se não houvesse nenhuma guerra. Entretanto, antes de explorar esse acontecimento único, é importante analisar como a Doutrina Weinberger se saiu durante a Guerra do Golfo Pérsico.

A invasão do Kuwait por Saddam Hussein em 2 de agosto de 1990 proporcionou a primeira oportunidade de ver as doutrinas Abrams e Weinberger em ação. Com a União Soviética mergulhada em disputas internas e à beira da dissolução, o governo de George H. W. Bush pôde mudar seu foco da Europa para o Oriente Médio, onde a manutenção da estabilidade e o acesso ao petróleo eram considerados interesses nacionais vitais. Passando no primeiro dos testes de Weinberger, a Operação Desert Storm deixou claro que essa não seria uma meia medida, pois uma coalizão impressionante de mais de 40 nações e quase 500 mil militares estadunidenses se reuniram na região.34 No quinto teste de Weinberger, cerca de 57% do público estadunidense apoiou o uso das Forças Armadas para retirar o Exército de Saddam do Kuwait, e 70% tinha plena confiança na vitória.35 Após discussões, o Congresso também aderiu, aprovando por pouco a Lei 102-1 (Public Law 102-1), que autorizou o uso da força para libertar o Kuwait da ocupação iraquiana sob os auspícios da Resolução 678 da Organização das Nações Unidas (ONU).36 Norteada por quatro objetivos relativamente claros, embora limitados, delineados na Diretriz de Segurança Nacional 54, Respondendo à Agressão Iraquiana no Golfo (National Security Directive 54, Responding to Iraqi Aggression in the Gulf), é razoável concluir que passou no terceiro teste de Weinberger.37 Tendo obtido amplo apoio internacional e doméstico, as forças dos EUA juntaram-se a mais de 300 mil membros da coalizão multinacional e iniciaram operações ofensivas em 17 de janeiro de 1991.38 Atendendo a quase todos os pré-requisitos de Weinberger, era hora de verificar se a AVF funcionaria em combate.

Left Quote

Embora uma avaliação inicial do apoio popular seja fundamental para decidir sobre dar início ou juntar-se a um conflito, também cabe aos líderes da nação manter esse apoio durante a guerra.

Right Quote

À primeira vista, a Operação Desert Storm foi um sucesso impressionante e uma validação completa da AVF. Não apenas justificou os investimentos em pessoal e armamento da década de 1980, mas também demonstrou a vantagem qualitativa e o espírito de corpo da AVF, derrotando o exército iraquiano em cem horas de combate terrestre. Mais impressionante do que sua velocidade foi a eficiência relativa dessa guerra de alta tecnologia, com apenas 147 militares estadunidenses mortos em combate para um número estimado de 25 mil iraquianos.39 A mensagem era clara: uma força voluntária bem equipada poderia cumprir os objetivos de segurança nacional quando esses objetivos fossem adequadamente definidos e fosse aplicada força esmagadora. O público estadunidense também reconheceu isso — a aprovação do uso da força contra o Iraque subiu para 80% durante a ofensiva da coalizão, e outros 90% acreditavam que as forças dos EUA estavam “fazendo um bom trabalho”.40 Após a guerra, a confiança dos estadunidenses nas Forças Armadas como instituição disparou para o nível impressionante de 89%.41 Seguiu-se uma comemoração coletiva, com os militares, seus líderes civis e o público participando de um desfile do Dia Nacional da Vitória em 8 de junho de 1991 e um tradicional desfile com chuva de papel picado pela cidade de Nova York, dois dias depois.42

O recém-confirmado Vice-Secretário de Defesa Paul Wolfowitz

Embora um inegável sentimento de orgulho tenha tomado conta da nação naquele período, é difícil não considerar as diferenças sutis entre o que cada grupo estava comemorando. As Forças Armadas finalmente haviam superado a “síndrome do Vietnã” e restaurado sua reputação. O governo Bush havia trabalhado arduamente para alinhar os instrumentos diplomáticos, políticos e militares do poder nacional para atingir seus objetivos e, ao mesmo tempo, evitar ir longe demais, o que geralmente acompanha o sucesso inicial na guerra.43 O público, instado apenas a apoiar simbolicamente as tropas, aplaudiu sua força voluntária por demonstrar a excelência militar estadunidense e fazer justiça onde era preciso. Todos os três grupos provavelmente deram um suspiro coletivo de alívio com a confirmação de que uma AVF, nas circunstâncias certas, poderia vencer. Assim como o motivo da comemoração, o efeito dessa percepção variou entre os grupos. Para as Forças Armadas, isso validou as iniciativas significativas de desenvolvimento da força e as reformas estruturais que foram introduzidas no Exército pós-Vietnã. Para a liderança política, isso aumentou a confiança no instrumento militar de poder e reduziu as restrições ao seu uso no exterior. Por fim, para o público, isso reforçou a noção de que o serviço militar como escolha é um modelo eficaz e reduziu a probabilidade de que fossem pressionados a servir. Se, como argumenta Bacevich, a Guerra do Vietnã “demoliu a noção de obrigação militar”, então a Guerra do Golfo Pérsico cravou o primeiro prego no seu caixão ao demonstrar ao público estadunidense que a nação poderia combater e vencer suas guerras sem ele.44 Em muitos aspectos, a Operação Desert Storm foi a tempestade perfeita, e a AVF saiu superficialmente ilesa porque foi empregada de acordo com os critérios rigorosos estabelecidos pela Doutrina Weinberger. No entanto, pouco mais de uma década depois, a AVF enfrentaria novamente o exército de Saddam, sem passar nos testes de Weinberger, e dessa vez o resultado seria muito diferente.

No shopping: Operação Iraqi Freedom

Em 2003, a nação mais uma vez renunciaria à conscrição em favor da convocação da AVF para cumprir suas ordens. Mas, a não ser por compartilhar essa característica única, a Guerra do Iraque de 2003 divergiu da Guerra do Iraque de 1991 em quase todos os aspectos concebíveis. Embora tenha passado em alguns dos testes de Weinberger, não passou em outros e diretamente virou um deles de ponta-cabeça. Esse fato, somado ao fracasso da Doutrina Abrams e à capacidade do governo de proteger a população da guerra por meio de programas como o Stop Loss, enfraqueceu a confiança nas Forças Armadas por parte da sociedade e teve um efeito desastroso na forma como esta percebia o serviço militar. O condicionamento resultante apenas reforçou a profissionalização da classe combatente dos EUA e aumentou a aversão geral do público ao serviço militar.

Left Quote

Quando lhe perguntaram qual seria a única questão relacionada ao Iraque que [o tenente-coronel] abordaria com o Presidente George W. Bush se tivesse a chance, o oficial respondeu: ‘Estamos em guerra; os EUA estão no shopping’.

Right Quote

Ao examinar a invasão do Iraque em 2003, o governo de George W. Bush claramente viu pouco valor na Doutrina Weinberger, recusando-se a ser restringido por testes criados para impedir a corrida para a guerra. Diferentemente de 1991, o Iraque não havia violado gravemente uma norma internacional antes da invasão pelos EUA. Em vez disso, o governo justificou a campanha como um ato preemptivo para impedir que Saddam Hussein adquirisse armas de destruição em massa (ADM). Embora baseado em informações de inteligência falhas, isso parecia ser do interesse vital da nação e, no ano anterior à invasão, a grande maioria do público estadunidense, espantosos 73%, apoiava o uso da força para remover Saddam do poder.45 Embora o apoio tenha baixado quando os acontecimentos no Iraque começaram a se desenrolar, no início, tanto o Congresso quanto o povo estadunidense apoiaram a iniciativa. Tendo passado inicialmente no primeiro e no quinto testes de Weinberger, o governo Bush não conseguiu obter o apoio da ONU e a campanha acabou sendo reprovada no sexto teste da doutrina, já que a guerra com o Iraque em 2003 não era, de forma alguma, um último recurso. Também não passou no terceiro teste, pois o motivo inicial para a remoção de Saddam — sua busca por ADM — rapidamente deu lugar a objetivos muito mais amorfos com relação à promoção da democracia, uma vez que não foram encontradas ADM.46 Essa mudança de pretexto abalou gravemente a confiança do público, que reconhecia a importância vital de proteger a nação contra ataques de ADM, mas não dava a mesma importância à forma de governança do Iraque. A população se sentiu traída e sua opinião revelou isso: em 2007, 67% disseram que a guerra não estava indo bem, e um ano depois, 54% acreditavam que os EUA haviam tomado a decisão errada de usar a força militar no Iraque, um aumento de 38% na desaprovação em relação a 2002.47 Grande parte desse descontentamento provavelmente se deveu ao fato de terem vendido uma guerra que, segundo o governo, exigiria poucos recursos e pouco esforço, o que é uma rejeição completa do segundo teste de Weinberger — “sem meias medidas” — e que merece uma análise mais detalhada.

Em vez de mobilizar a nação para a guerra de forma responsável, o governo Bush deixou claro que a Guerra do Iraque seria uma guerra limitada, e as autoridades de alto escalão prometeram que custaria pouco em termos de vidas ou recursos. Isso levou a constantes negociações sobre os níveis de tropas entre o Gabinete do Secretário de Defesa, liderado por Donald Rumsfeld, e os planejadores operacionais do Comando Central dos EUA, que tinham o apoio dos comandantes das Forças Singulares. Em sua diretriz inicial, Rumsfeld defendeu um “plano de início de operação” que exigia o envio de apenas 18 mil soldados, com forças subsequentes sendo enviadas apenas quando necessário.48 Reconhecendo a inviabilidade dessa linha de ação, os planejadores do Comando Central dos EUA acabaram convencendo Rumsfeld a aceitar um plano diferente e um contingente maior, mas ainda modesto, de 222.500 militares — cerca de um terço do número usado na Operação Desert Storm.49 Isso não agradou ao Gen Eric Shinseki, então Chefe do Estado-Maior do Exército, que observou que o Secretário de Defesa havia “obstruído demais o processo” e estressado muito o componente da reserva ao introduzir um grau desnecessário de incerteza nas mobilizações.50 Semanas mais tarde, em 25 de fevereiro de 2003, ao depor perante o Comitê das Forças Armadas do Senado (Senate Armed Services Committee, SASC) sobre o número de militares necessários para estabilizar o Iraque, Shinseki deixou claro que seria preciso muito mais, observando que “provavelmente serão necessárias algumas centenas de milhares de militares”.51 Por essa sugestão, ele foi criticado publicamente por Rumsfeld e pelo Vice-Secretário de Defesa, Paul Wolfowitz, que chamou a estimativa de Shinseki de “extremamente equivocada” e “bizarra”.52 Embora a passagem de Shinseki à reserva remunerada naquele verão tenha sido aprovada bem antes de seus comentários ao SASC, a repreensão de Rumsfeld e Wolfowitz teve um efeito negativo em todo o Departamento de Defesa, e ficou claro que a intenção do governo era manter essa guerra o menos invasiva possível.53 Depois de abafar a maior parte da discordância com relação ao envio de tropas, o Gabinete do Secretário de Defesa passou a tentar convencer a nação de que a guerra também seria travada de forma econômica.

Aproximadamente um mês após o depoimento de Shinseki ao SASC, Rumsfeld e Wolfowitz depuseram perante o Subcomitê da Câmara de Dotação Orçamentária da Defesa sobre o custo da reconstrução no Iraque. Em seus depoimentos, ambos os líderes deixaram claro que o público estadunidense não arcaria com o custo da reconstrução, nem por meio de impostos e muito menos por meio de um conceito ultrapassado como os bônus de guerra. Wolfowitz declarou: “Estamos lidando com um país totalmente capaz de financiar sua própria reconstrução e de forma relativamente rápida”.54 Rumsfeld foi mais além em suas observações, afirmando: “Não acredito que os EUA sejam responsáveis pela reconstrução […] e os fundos podem vir das diversas fontes que mencionei: ativos congelados, receitas petrolíferas e uma variedade de outras coisas […].”55 De acordo com Rumsfeld e Wolfowitz, essa nova guerra autofinanciada não exigiria “empenho total” dos EUA, e eles fariam tudo ao seu alcance para evitar que recaísse sobre o público.

Os cidadãos acataram em grande parte e, em vez de se sacrificarem mediante o aumento de impostos, da partilha de carros ou algo semelhante, a nação seguiu adiante de forma ininterrupta. Após os ataques do 11 de Setembro, sugeriu-se ao público que fosse para a Disney World, e o que antes era um fardo nacional coletivo foi colocado inteiramente sobre os ombros da AVF.56 Ironicamente, em uma guerra fortemente influenciada pelo interesse dos EUA no petróleo, em vez de adotar medidas para reduzir essa dependência, os anos de 2003 e 2004 testemunharam a única queda consecutiva de dois anos na eficiência média no consumo de combustível para picapes leves desde 2000.57 Parecia que o patriotismo havia se reduzido a comprar uma picape grande, de alto consumo de gasolina, e colocar um adesivo com a bandeira dos EUA no para-choque. Apesar de conseguir proteger o público do encargo financeiro da guerra ao transferir o custo para as gerações posteriores, não se podem comprar soldados a crédito, e, quando a guerra curta e barata se transformou em uma insurgência prolongada, o governo se apoiou no Conceito de Força Total para fornecê-los.

A NCA não se esquivou de usar o componente da reserva para atender às necessidades das operações no Iraque e no Afeganistão e, com mais de 143 mil integrantes da Guarda Nacional e da reserva mobilizados até junho de 2003, parecia que Abrams havia conseguido garantir que a nação nunca mais entrasse em guerra sem a reserva.58 No entanto, se Abrams e os idealizadores do Conceito de Força Total pretendiam que essa ideia servisse como um controle da capacidade do Presidente de usar a força no exterior, isso não funcionou. À medida que crescia a desaprovação pública em relação à guerra, também aumentavam as tropas do componente da reserva em combate, com mais de 250 mil membros da Guarda Nacional servindo na Operação Iraqi Freedom e mais de 183 mil reservistas sendo enviados ao Iraque ou ao Afeganistão até 2009.59 Embora difíceis, os transtornos causados pelas mobilizações da Guarda Nacional e da reserva não foram suficientes para desencadear um reexame significativo da guerra. No entanto, a dependência do governo em relação a uma política de pessoal raramente usada da Guerra Fria para cobrir lacunas certamente chamou a atenção do público.

À medida que a Força Total se curvava, mas não quebrava, o governo Bush manteve sua intenção de evitar colocar qualquer ônus relacionado à guerra sobre a população e, em vez disso, lançou mão do programa Stop Loss para atender às crescentes necessidades de pessoal da Operação Iraqi Freedom. Criado pela Lei de Autorização do Departamento de Defesa para o ano de 1984, o programa Stop Loss permite que o Presidente suspenda as passagens para a reserva remunerada e os desligamentos em períodos de emergência nacional ou de convocação presidencial do componente da reserva.60 De acordo com esse programa, os militares designados para uma unidade programada para desdobramento, cujo desligamento esteja programado para ocorrer durante o desdobramento ou dentro de 90 dias após o desdobramento, têm o serviço involuntariamente estendido durante o desdobramento até 90 dias após o retorno. Embora tenha sido usado anteriormente, o período de 2001 a 2009 testemunhou a maior aplicação do Stop Loss desde 1984, em que mais de 185 mil militares tiveram seu serviço militar estendido involuntariamente para missões no Iraque ou Afeganistão.61 Isso, na verdade, configurou um “recrutamento pela porta dos fundos”, em que os únicos cidadãos obrigados a servir eram aqueles que haviam se voluntariado em primeiro lugar. O programa transferiu totalmente o ônus em tempo de guerra da nação para a AVF, e o povo percebeu. O programa era tão predominante que até mesmo a Paramount Pictures se envolveu, lançando o filme Stop-Loss, de 2008, que narra as dificuldades do 2º Sgt Brandon King, interpretado por Ryan Phillippe, enquanto ele enfrentava um desdobramento imposto para o Iraque.62 Embora fictício, o filme reforçou vários temas populares que caracterizaram a guerra do Iraque na psique do público: os objetivos eram duvidosos, os desdobramentos eram arbitrários e numerosos e o Exército era insensível e carecia de empatia. Fora dos cinemas, o fato de a administração ter usado o programa Stop Loss para limitar as dificuldades da guerra à AVF condicionou ainda mais o público a acreditar que não tinha obrigação de servir e que era improvável que fosse chamado a fazê-lo. Isso não apenas corroeu a confiança do público ao expor as Forças Armadas como não cumpridoras de seu acordo com seus integrantes, como também aumentou o abismo entre a sociedade e as Forças Armadas, cada vez mais exaustas pela frequência dos desdobramentos e pela falta de disposição do governo em distribuir o fardo. Em uma entrevista franca de 2006, um tenente-coronel desdobrado para Bagdá resumiu a enorme frustração com a AVF bem como suas deficiências intrínsecas. Quando lhe perguntaram qual seria a única questão relacionada ao Iraque que ele abordaria com o Presidente George W. Bush se tivesse a chance, o oficial respondeu: “Estamos em guerra, os EUA estão no shopping”.63

O governo, as Forças Armadas e o povo

Desde o retorno à AVF, os cidadãos estadunidenses estão cada vez mais distantes do assunto, do sacrifício e dos efeitos da guerra. No entanto, essa dinâmica social pouco saudável não é culpa deles, mas é produto de 50 anos de condicionamento para depender da AVF. Os indicadores do abismo cada vez maior entre as Forças Armadas e a população são abundantes e não apresentam tendências positivas. Além dos resultados desanimadores do recrutamento de 2022, a confiança do público nas Forças Armadas caiu drasticamente de 70% em 2017 para 48% em 2022.64 Da mesma forma, menos estadunidenses estão optando por servir e, desde 1973, a porcentagem da população no serviço ativo caiu pela metade, de 1% para menos de 0,5%.65 Neutralizando de fato um terço da famosa trindade de Clausewitz, o governo e as Forças Armadas ficaram sozinhos para lutar as guerras da nação sem o povo. Esse modelo condicionou o público estadunidense a evitar o serviço militar por cinco décadas, deixando os EUA em uma grande desvantagem na hora de se mobilizar para a próxima grande guerra. Por mais bem treinados e equipados que sejam, 0,5% da nação é uma representatividade lastimável da vontade nacional. Embora a população provavelmente responda ao chamado às armas em caso de ataque aos EUA, é duvidoso que o faça em um ataque às ilhas Penghu, Senkaku ou Kinmen — todos esses possíveis pontos críticos na próxima guerra. Isso deixa a AVF em uma situação precária, ao se preparar para guerras que não tem influência para evitar e talvez não tenha vontade de vencer.

Com base nas lições do Vietnã, tanto a Doutrina Abrams quanto a Doutrina Weinberger buscaram preservar o vínculo fundamental entre o povo e as Forças Armadas, garantindo que o primeiro se mantivesse como parte interessada e que estas últimas não fossem abusadas em guerras de escolha. A adesão a essas doutrinas, supunha-se, confirmaria a força de vontade interna necessária para vencer no exterior. Conforme o governo de George H. W. Bush aplicou ambas as doutrinas durante a Operação Desert Storm, o sucesso impressionante da AVF pareceu validá-la como o conceito ideal de guarnição. Na realidade, a AVF foi vítima de seu próprio sucesso, e a mensagem recebida foi que a população estadunidense poderia ficar em casa, pois suas Forças Armadas poderiam vencer sem ela. Depois disso, a AVF se encaixou perfeitamente naquele breve período de hegemonia estadunidense que Francis Fukuyama chamou “fim da história”.66 Sem uma ameaça de adversários com poder de combate equiparado à vista, certamente a AVF estava à altura da tarefa de depor ex-déspotas do terceiro mundo e caçar terroristas. Infelizmente, a inobservância da Doutrina Weinberger pelo governo de George W. Bush em 2003 fez com que a AVF conduzisse uma contrainsurgência confusa e prolongada, sob pretextos duvidosos, em busca de objetivos vagos. O Pentágono, enfrentando dificuldades para atender às necessidades de pessoal, contou com o programa Stop Loss para estender, involuntariamente, o serviço militar de voluntários, protegendo assim o público dos efeitos da guerra. Indo um pouco além, a mensagem geral do governo após os eventos do 11 de Setembro incentivou os cidadãos a tirar férias, fazer compras e ir a restaurantes; acabaram-se os aumentos de impostos, as hortas da vitória ou qualquer outro vestígio de sacrifício. Embora fosse conceitualmente admirável, a Doutrina Abrams superestimou a capacidade da reserva para influenciar a vontade popular e não foi capaz de evitar o fiasco no Iraque. Tudo isso resultou em uma trindade muito doente e em uma nação mal preparada para conduzir as campanhas expedicionárias prolongadas que provavelmente enfrentará no futuro. Para ajustar o curso, é necessário recondicionar o povo estadunidense para reconhecer o serviço militar como parte obrigatória da cidadania por meio da criação de uma força mista de conscritos e voluntários dimensionada para atender às exigências anuais. Todos os adversários da nação reconhecem a importância de sua população na condução da guerra. É hora de os EUA fazerem o mesmo.

As opiniões aqui expressas são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem as opiniões do Estado-Maior Conjunto, do Exército dos EUA ou do Departamento de Defesa.


Referências

  • Epígrafe. Carl von Clausewitz, On War, ed. e trad. Michael Howard and Peter Paret (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1984), p. 219. [Os trechos da obra Da Guerra foram extraídos da tradução do inglês para o português do CMG (RRm) Luiz Carlos Nascimento e Silva do Valle, a partir da versão em inglês de Michael Howard e Peter Paret.]

 

  1. “Why Has America’s Army Recruitment Plummeted?”, Economist (site), 29 November 2022, acesso em 27 jun. 2023, https://www.economist.com/the-economist-explains/2022/11/29/why-has-americas-army-recruitment-plummeted.
  2. Ibid.; “Army Fiscal Year 2023 Budget Overview”, Army Financial Management and Comptroller, 28 March 2022, acesso em 27 jun. 2023, https://www.asafm.army.mil/Budget-Materials/; “Army Fiscal Year 2024 Budget Overview”, Army Financial Management and Comptroller, acesso em 27 jun. 2023, https://www.asafm.army.mil/Budget-Materials/.
  3. “Army Fiscal Year 2023 Budget Overview”.
  4. Army Directive 2019-25, Establishment of the Office of the Chief Army Enterprise Marketing (Washington, DC: Headquarters, Department of the Army, 1 August 2019), acesso em 27 jun. 2023, https://armypubs.army.mil/ProductMaps/PubForm/Details.aspx?PUB_ID=1007542.
  5. “Army Fiscal Year 2024 Budget Overview”; Jonathan Franklin, “The Army Is Increasing Its Largest Signing Bonus to $50,000 for Some New Recruits”, National Public Radio, 12 January 2022, acesso em 27 jun. 2023, https://www.npr.org/2022/01/12/1072628577/army-increases-bonus-new-recruits.
  6. Office of the Secretary of Defense, National Defense Strategy (Washington, DC: U.S. Department of Defense, 2022), acesso em 28 jun. 2023, https://media.defense.gov/2022/Oct/27/2003103845/-1/-1/1/2022-NATIONAL-DEFENSE-STRATEGY-NPR-MDR.PDF; Chairman of the Joint Chiefs of Staff, National Military Strategy (Washington, DC: Joint Chiefs of Staff, 2022), acesso em 28 jun. 2023, https://www.jcs.mil/Portals/36/NMS%202022%20_%20Signed.pdf.
  7. Clausewitz, On War, p. 77.
  8. John Nagl et al., “U.S. Army War College Integrated Lessons Learned from the Russo-Ukraine War” (apresentação em painel, United States Army War College Strategic Landpower Symposium, Carlisle Barracks, PA, 9–11 May 2023), acesso em 27 jun. 2023, https://csl.armywarcollege.edu/landpower/default.aspx.
  9. Clausewitz, On War, p. 89.
  10. David E. Rosenbaum, “Senate Approves Draft Bill, p. 55-30; President to Sign”, New York Times (site), 22 September 1971, acesso em 27 jun. 2023, https://www.nytimes.com/1971/09/22/archives/senate-approves-draft-bill-5530-president-to-sign-action-in.html.
  11. Ibid.
  12. Bernard Rostker, I Want You! The Evolution of the All-Volunteer Force (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2006), p. 92, acesso em 27 jun. 2023, https://www.rand.org/pubs/monographs/MG265.html.
  13. Military Selective Service Act of 1967, amendments, Pub. L. No. 92-129, 85 Stat. 348 (1971).
  14. Rostker, I Want You!, p. 25; David R. Segal, Recruiting for Uncle Sam: Citizenship and Military Manpower Policy (Lawrence: University Press of Kansas, 1989), p. 31.
  15. Lewis Sorley, Thunderbolt: General Creighton Abrams and the Army of His Times (New York: Simon & Schuster, 1992), p. 363-64.
  16. James Jay Carafano, “Total Force Policy and the Abrams Doctrine: Unfulfilled Promise, Uncertain Future”, Foreign Policy Research Institute, 1 February 2005, acesso em 27 jun. 2023, https://www.fpri.org/article/2005/02/total-force-policy-and-the-abrams-doctrine-unfulfilled-promise-uncertain-future/.
  17. Andrew J. Bacevich, The New American Militarism: How Americans are Seduced by War, 2nd updated ed. (New York: Oxford University Press, 2013), p. 39.
  18. Sorley, Thunderbolt, p. 361-62, 364.
  19. Harry G. Summers, “The Army after Vietnam”, in Against All Enemies: Interpretations of American Military History from Colonial Times to the Present, ed. Kenneth J. Hagan and William R. Roberts (Westport, CT: Greenwood Press, 1986), p. 363; Andrew J. Bacevich, Breach of Trust: How Americans Failed Their Soldiers and Their Country (New York: Picador, 2014), p. 106.
  20. Sorley, Thunderbolt, p. 364.
  21. Ibid.
  22. Martin Binkin, Who Will Fight the Next War? The Changing Face of the American Military (Washington, DC: Brookings Institution Press, 1993), p. 109-10.
  23. “Operations Desert Shield and Desert Storm”, Office of Army Reserve History, acesso em 27 jun. 2023, https://www.usar.army.mil/OurHistory/DesertShield-DesertStorm/; “25th Anniversary: Operation Desert Storm”, National Guard Bureau, acesso em 27 jun. 2023, https://www.nationalguard.mil/Features/2016/Desert-Storm/.
  24. “Caspar W. Weinberger”, Historical Office, Office of the Secretary of Defense, acesso em 27 jun. 2023, https://history.defense.gov/Multimedia/Biographies/Article-View/Article/571286/caspar-w-weinberger/.
  25. Ibid.
  26. Ibid.
  27. “What Is the State of the Military and How Are Us Veterans Faring?”, USA Facts, acesso em 27 jun. 2023, https://usafacts.org/state-of-the-union/defense/.
  28. “Excerpts from Address of Weinberger”, New York Times (site), 29 November 1984, acesso em 27 jun. 2023, https://www.nytimes.com/1984/11/29/world/excerpts-from-address-of-weinberger.html; Michael I. Handel, Masters of War: Classical Strategic Thought, 3rd rev. ed. (New York: Routledge, 2001), p. 310-11.
  29. Bacevich, New American Militarism, p. 51-52.
  30. Caspar W. Weinberger, Fighting for Peace: Seven Critical Years in the Pentagon (New York: Warner Books, 1990), p. 159.
  31. Handel, Masters of War, p. 308-9.
  32. Bacevich, New American Militarism, p. 99.
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  34. Shannon Collins, “Desert Storm: A Look Back”, U.S. Department of Defense, 11 January 2019, acesso em 27 jun. 2023, https://www.defense.gov/News/Feature-Stories/story/article/1728715/desert-storm-a-look-back/.
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  36. Ibid., p. 92-94; Authorization for Use of United States Armed Forces, Pub. L. No. 102-1, 105 Stat. 3 (1991); UN Security Council, Resolution 678, S/RES/678 (29 November 1990).
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  38. Allison, The Gulf War, p. 102.
  39. Ibid., p. 144.
  40. Ibid., p. 153.
  41. Ibid.
  42. Ibid., p. 154.
  43. Ibid., p. 94.
  44. Bacevich, New American Militarism, p. 99.
  45. Dexter Filkins, “Colin Powell’s Fateful Moment”, New Yorker (site), 18 October 2021, acesso em 27 jun. 2023, https://www.newyorker.com/news/daily-comment/colin-powells-fateful-moment; Pew Research Center, Americans Favor Force in Iraq, Somalia, and Sudan (Washington, DC: Pew Research Center, 22 January 2002), acesso em 27 jun. 2023, https://www.pewresearch.org/politics/2002/01/22/americans-favor-force-in-iraq-somalia-sudan-and/.
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  49. Ibid., p. 27.
  50. Ibid., p. 27-28.
  51. Ibid., p. 33.
  52. Ibid.
  53. Ibid.
  54. 149 Cong. Rec. S13753 (2003), acesso em 27 jun. 2023, https://www.congress.gov/congressional-record/volume-149/issue-157/senate-section/article/S13751-7?r=1097.
  55. 149 Cong. Rec. S13754 (2003), acesso em 27 jun. 2023, https://www.congress.gov/congressional-record/volume-149/issue-157/senate-section/article/S13751-7?r=1097.
  56. George W. Bush, “At O’Hare, President Says ‘Get on Board’” (discurso para funcionários de companhias aérea, Chicago, IL, 27 set. 2001), acesso em 27 jun. 2023, https://georgewbush-whitehouse.archives.gov/news/releases/2001/09/20010927-1.html.
  57. “Average Fuel Efficiency of U.S. Light Duty Vehicles”, Bureau of Transportation Statistics, acesso em 27 jun. 2023, https://www.bts.gov/content/average-fuel-efficiency-us-light-duty-vehicles.
  58. Sorley, Thunderbolt, p. 361-62, 364; Gregory Fontenot, E. J. Degen e David Tohn, On Point: The United States Army in Operation Iraqi Freedom (Fort Leavenworth, KS: Combat Studies Institute Press, 2004), p. 176.
  59. John Orrell, “The National Guard’s Contribution: 300,000-Plus Iraq Deployments”, National Guard Bureau, 4 January 2012, acesso em 27 jun. 2023, https://www.nationalguard.mil/News/Article/576180/the-national-guards-contribution-300000-plus-iraq-deployments/; Kathryn Roe Coker, Biannual Army Reserve Historical Summary: 2008/2009, ed. Deborah Foster-King et al. (Fort Bragg, NC: Office of Army Reserve History, 2013), p. xlvii, acesso em 27 jun. 2023, https://www.usar.army.mil/Portals/98/Documents/historycorner/USARC%202008_2009%20History%20for%20Web.pdf.
  60. Charles A. Henning, U.S. Military Stop Loss Program: Key Questions and Answers, Congressional Research Service (CRS) Report No. R40121 (Washington, DC: CRS, 10 July 2009), acesso em 27 jun. 2023, https://apps.dtic.mil/sti/citations/ADA503196.
  61. Ibid.
  62. Stop-Loss, dirigido por Kimberly Peirce (Los Angeles: Paramount Pictures, 2008), última atualização em 12 dez. 2012, acesso em 27 jun. 2023, https://www.imdb.com/title/tt0489281/.
  63. Greg Kandra, “We’re at War; America’s at the Mall”, CBS News, 8 September 2006, acesso em 27 jun. 2023, https://www.cbsnews.com/news/were-at-war-americas-at-the-mall/.
  64. Stew Magnuson, “Annual Poll Shows Low Confidence in Military”, National Defense (site), 18 January 2023, acesso em 27 jun. 2023, https://www.nationaldefensemagazine.org/articles/2023/1/18/annual-poll-shows-low-confidence-in-military.
  65. “Demographics of the U.S. Military”, Council on Foreign Relations, última atualização em 13 jul. 2020, acesso em 27 jun. 2023, https://www.cfr.org/backgrounder/demographics-us-military.
  66. Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (New York: Simon & Schuster, 2006), p. xi.

 

O Maj Christopher Parker é estrategista do Exército dos EUA que atua como planejador estratégico no Estado-Maior Conjunto, J-7 (Desenvolvimento da Força Conjunta). É bacharel pela Kansas State University e mestre em História pela Georgia Southern University e serviu em missões de combate no Iraque.

 

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