Forças Armadas e Capacidade Relacional na Operação COVID-19
Ten Cel Maurício Gröhs, Exército Brasileiro
Maj Eduardo Luiz Biavaschi, Exército Brasileiro
Prof.a Dra. Karina Furtado Rodrigues
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A Operação COVID-19, ativada em 20 Mar 2020 e cuja primeira fase se concluiu em 30 Abr 2020, se desvelou no contexto da reação do Estado Brasileiro à situação emergencial de saúde pública provocada pela disseminação do novo coronavírus. Na mobilização que o país tem vivenciado, as Forças Armadas surgiram como uma das instituições com capacidades estatais de pronta-resposta, atuando em constante diálogo e apoio a outras instituições públicas e diversos setores da sociedade civil.
Uma das capacidades que tem sido demonstrada pelas Forças Armadas é a habilidade de se integrar em um ambiente de atuação interagências, operando de forma articulada para complementar as potencialidades de outros entes, ao que se chama de capacidade relacional. Para a presente análise, busca-se compreender a atuação das Forças Armadas como uma das instituições integrantes da estrutura do Estado Brasileiro que contribuem para a capacidade estatal de enfrentamento a uma crise pandêmica. Portanto, questiona-se: como a capacidade relacional se fez presente nas ações realizadas na Operação COVID-19?
A Estratégia Nacional de Defesa de 2008, primeira publicada na Nova República Brasileira (e já revisada em 2012 e 2016), inovou ao incorporar como diretriz a estruturação do potencial estratégico do país e a organização das Forças Armadas em torno de capacidades, não em torno de inimigos específicos1. Essa orientação estratégica segue uma tendência do mundo contemporâneo, na qual diversos países, especialmente integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), passam a organizar seu aparato militar em torno da criação de atributos organizacionais, materiais e relacionais, que possam responder a uma variada gama de ameaças2.
Dessa expansão da agenda de segurança nacional, decorre uma ampliação das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas para além da tradicional defesa da pátria contra agressão militar e inclusão de atividades ligadas à defesa do cidadão. No caso brasileiro, o planejamento estratégico de defesa é orientado por um documento intitulado Cenário de Defesa3, que elenca as chamadas Implicações para a Segurança e Defesa (ID), categorizadas em características futuras dos conflitos, oportunidades e ameaças4.
A partir da construção desses cenários prospectivos, o Brasil deverá desenvolver as capacidades nacionais de defesa (nível nacional), as capacidades militares de defesa (nível setorial) e as capacidades específicas de cada força (subsetoriais), visando a garantir o emprego eficiente do aparato militar nacional frente a uma ampla gama de ameaças. O Cenário de Defesa 2020-20395 estabelece as pandemias como ameaça (ID 24) e, assim sendo, as Forças Armadas possuem capacidades específicas que contribuem para a mitigação dos impactos negativos da disseminação do novo coronavírus6.
Busca-se apresentar ações das Forças Armadas que indiquem a presença da capacidade relacional no contexto da Operação COVID-19. Para levantamento de dados, foram realizadas consultas a páginas eletrônicas de órgãos oficiais atuantes na operação, bem como comunicações com militares envolvidos em algumas das ações identificadas (como o caso do Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército e do Instituto Militar de Engenharia).
Além desta introdução, este artigo apresenta uma segunda seção, onde são explorados os conceitos de capacidade estatal e capacidade relacional, além da sua ligação com o emprego das Forças Armadas. A terceira seção aborda a capacidade relacional no contexto da Operação COVID-19, com apresentação de ações realizadas no âmbito dessa. Por fim, a quarta seção expõe as considerações finais, apontando potencialidades da logística como capacidade estatal, bem como uma agenda de estudos futuros.
Capacidade Relacional e Forças Armadas
As capacidades estatais são o conjunto de organizações e mecanismos existentes na estrutura de um Estado que permitem, em especial, a implementação de políticas públicas e ações governamentais7. A capacidade relacional, foco deste artigo, emerge como uma importante dimensão da capacidade estatal8, conceituada como a habilidade da burocracia estatal de articular suas instituições e interagir com diversos setores da sociedade para mobilizar recursos, efetivamente alcançar toda a população e implementar logisticamente as decisões políticas por todo o território9.
A capacidade relacional subentende duas dimensões distintas: uma de governança10 e coordenação entre diferentes entes e outra de capilaridade territorial, esta que é inerente à logística militar, por exemplo. Como conceito, pode ser compreendido de forma compartimentada e, para a presente análise, considerou-se três aspectos: (1) interoperabilidade das forças armadas, ou seja, a capacidade de Exército, Marinha e Aeronáutica operarem de forma conjunta com otimização de recursos humanos e materiais; (2) coordenação com agências, ou seja, a capacidade de atuação das Forças Armadas em articulação e cooperação com outras agências governamentais e não governamentais; e (3) alcance territorial, que cresce de importância em Estados com grande dimensão territorial e população, como é o caso do Brasil. Nesses Estados, a irradiação do poder central e o alcance de implementação de políticas depende da ramificação de suas instituições. As ações estatais terão maior efetividade na proporção direta da articulação entre instituições em diferentes níveis (nacional, regional e municipal)11.
Nota-se que, na Operação COVID-19, as Forças Armadas, diferentes instituições públicas e entidades privadas têm atuado de forma integrada e coordenada, com vistas à conciliação de objetivos e à complementariedade de capacidades no combate ao novo coronavírus por todo o território nacional. No Brasil, um mecanismo que contribui para o estabelecimento de canais de diálogo entre Forças Armadas, instituições públicas e sociedade civil é o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) estabelecido pelo Governo Federal. Esse sistema implica na adoção de medidas em todos os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), tanto para mitigar riscos de desastre (preventivas) quanto para minimizar seus impactos, estimulando a participação de entidades privadas em coordenação com os órgãos públicos12.
Cooperar com a defesa civil é atribuição subsidiária geral das Forças Armadas13. O Ministério da Defesa participa do Conselho Nacional de Defesa Civil, enquanto as organizações militares, através de oficiais de ligação, atuam junto às Comissões Estaduais e Municipais de Defesa Civil no planejamento, prevenção e preparação. Há, normalmente, a designação de um oficial de ligação do Exército que atua nas atividades de planejamento, prevenção e preparação junto aos órgãos municipais do SINPDEC. Esse mecanismo permite a pronta-resposta estatal em situações emergenciais especialmente no âmbito municipal, na medida em que os quartéis possuem inúmeras capacidades (como recursos humanos e transporte) que, integradas aos demais órgãos, favorecem uma ação rápida14.
Operação COVID-19 e Capacidade Relacional
Esta seção visa a analisar os três aspectos da capacidade relacional, apresentados na seção anterior, no âmbito da Operação COVID-19, a fim de se averiguar como se ativou a capacidade estatal de pronta-resposta do Estado Brasileiro na crise pandêmica.
O primeiro aspecto, a interoperabilidade, é retratado na própria estrutura de comando da Operação COVID-19, que tem um Centro de Operações Conjuntas (COC) no Ministério da Defesa e dez Comandos Conjuntos distribuídos pelo território nacional, sendo oito deles em Comandos Militares de Área do Exército e outros dois em Distritos Navais da Marinha. Esses comandos se articulam ainda com o Comando de Operações Aeroespaciais (COMAE) da Aeronáutica e com o Centro de Coordenação de Logística e Mobilização (CCLM), que coordena demandas das três Forças Armadas e dessas com outros setores da administração pública federal15.
Um exemplo que bem caracteriza o aspecto da interoperabilidade é a produção da cloroquina16. O Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) é detentor do registro desse medicamento junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e iniciou a produção emergencial em 23 Mar 2020. Após a produção pelo LQFEx, o Laboratório Farmacêutico da Marinha (LFM) e o Laboratório Químico Farmacêutico da Força Aérea (LAQFA) entram no processo e realizam embalagem e rotulagem. Por meio dessa atuação conjunta, os três laboratórios contribuem para atendimento do aumento da demanda pelo medicamento, garantindo o suprimento das necessidades oriundas tanto das organizações de saúde das Forças Armadas quanto do Ministério da Saúde17.
Segundo informação obtida junto à direção do LQFEx, foram produzidos 1.250.000 comprimidos de cloroquina durante a primeira fase da Operação COVID-1918. É pertinente destacar que o LQFEx, em situações de normalidade, já produz a cloroquina em menor escala para os hospitais militares e que, na situação emergencial, houve a ampliação dessa produção por demanda do Ministério da Saúde.
Essa ligação com o Ministério da Saúde (MS) traz à tona o segundo aspecto da capacidade relacional, que é a coordenação com agências. No nível político, o MD liga-se com o MS por meio Secretaria de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto (SEPESD), sendo os dois ministérios integrantes do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, que é coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e conta com a participação de representantes de 32 órgãos da administração pública federal19. No nível estratégico, o CCLM atua em ligação com esse comitê, fazendo com que as Forças Armadas sejam integradas a um sistema mais amplo de gerenciamento de crise, contribuindo para a complementariedade de capacidades e para a mitigação de duplicidade de ações.
A atividade de manutenção de ventiladores mecânicos hospitalares no âmbito da Operação COVID-19 destaca esse aspecto de coordenação com agências. O comando da Operação COVID-19 e o Conselho da Indústria de Defesa e Segurança (CONDEFESA) da Confederação Nacional da Indústria (CNI) implementaram uma ação para transportar e manutenir esse material de forma gratuita. O transporte está sendo realizado pela Força Aérea Brasileira e a manutenção pelos Centros de Inovação e Tecnologia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) (CIT/SENAI). A título de exemplo, em 6 Abr 2020, um avião da FAB transportou 18 respiradores do Distrito Federal e do Amapá para serem consertados no CIT/SENAI em Belo Horizonte, Minas Gerais20.
A coordenação com agências também ocorre nos níveis operacional e tático. Como exemplo, cita-se a produção de máscaras pelo Batalhão de Dobragem, Manutenção de Paraquedas e Suprimentos pelo Ar (Dompsa) do Exército em parceria com o Serviço Social do Comércio do Rio de Janeiro (SESC/RJ) e pelo Departamento Regional do Abrigo do Marinheiro, com colaboração do SENAI/RN21.
Outro exemplo é o Assessoramento Científico-Tecnológico prestado pelo instituto Militar de Engenharia (IME). O IME desenvolveu um Sistema de Monitoramento, Modelagem e Simulação para consolidação de dados da epidemia em parceria com a RIOSAÚDE, empresa pública de saúde do Rio de Janeiro, e com o apoio de pesquisador da Universidade Federal de Viçosa22. Nessa mesma linha, o Instituto contribui para o mapeamento de casos do novo coronavírus na cidade do Rio de Janeiro, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde desse Estado. Também participam dessa atividade o 5o Centro de Geoinformação (5o CGEO) do EB, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)23.
Os engenheiros militares também atuam em cooperação com as agências ligadas à defesa civil. Recentemente, integrantes do Instituto elaboraram o manual “Medidas de Higienização para Transporte de Carga no Estado do Rio de Janeiro” em colaboração com a Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro e em parceria com a PUC-Rio e a UFRJ. Esse material contribui para o aumento da segurança no transporte de suprimentos médicos e alimentos, entre outros24. Outra ação do IME voltada para a proteção é a produção de máscaras do tipo Face Shield, com previsão de entrega de aproximadamente 900 itens até o fim do mês de maio de 2020 para diversos hospitais militares e civis, como o Hospital Municipal Miguel Couto25.
A Operação COVID-19 também ressalta o aspecto alcance territorial da capacidade relacional, que é o alcance territorial das decisões tomadas. As Forças Armadas são caracterizadas por grande capilaridade, especialmente em função das mais de 800 unidades do Exército existentes nos 26 Estados da federação e distrito federal e do apoio aéreo prestado pela Aeronáutica. Nesse aspecto, o Apoio Aéreo Logístico da FAB merece destaque. A FAB tem realizado transporte de toneladas de materiais de saúde entre seus Centros Logísticos, que estão distribuídos ao longo de todo o território nacional26.
É pertinente destacar que os três aspectos abordados não são estanques. O alcance territorial, por exemplo, se inter-relaciona com o aspecto ‘coordenação e cooperação com outras agências’, na medida em que as ações em nível regional e local visam a complementar capacidades de governos estaduais e municipais, respectivamente. Para ilustrar, cita-se o caso do 4o Batalhão Logístico de Santa Maria/RS que distribuiu recentemente mais de 2.000 cestas básicas em ação coordenada com a Secretaria de Educação do Governo do Rio Grande do Sul27. No outro extremo do país, o 7o Batalhão de Engenharia de Construção apoiou o Governo do Estado do Acre com a distribuição de mais de 400 toneladas de alimentos durante a 1a fase da Operação COVID-1928.
A tabela apresenta alguns exemplos de atividades realizadas no âmbito da Operação COVID-19 que destacam o alcance territorial das ações, assim como os outros dois aspectos da capacidade relacional acima explanados.
Considerações Finais
A análise da capacidade relacional presente na Operação COVID-19 revela dois aspectos fundamentais para a resposta estatal em situações de crise. Primeiro, ressalta a relevância da existência de instituições com capilaridade e alcance territorial, especialmente no caso de uma pandemia de doença altamente infecciosa e em um país extenso como o Brasil.
Segundo, reafirma-se a necessidade de coordenação e cooperação não só entre as três Forças Armadas (interoperabilidade), mas também dessas com outras instituições públicas e organizações da sociedade civil (coordenação com agências). O desenvolvimento desses dois aspectos contribui para um maior alcance territorial das ações estatais de mitigação dos impactos negativos da disseminação do novo coronavírus.
Com base nos dados apresentados no artigo, verifica-se ainda que, nas ações da Operação COVID-19, não há atuação insular das Forças Armadas ou de outro agente em nenhum nível; ao contrário, a complementariedade de capacidades e a mitigação de duplicidade de ações geram o rol de ações das Forças Armadas, dentro do contexto da reação do Estado Brasileiro à crise.
Por fim, salienta-se que a missão primária das Forças Armadas é a defesa da pátria e, para isso, desenvolvem uma ampla gama de capacidades de defesa, como a pronta-resposta, a mobilização e a mobilidade estratégica. Essas capacidades desenvolvidas no seio de uma doutrina militar voltada para a guerra favorecem o emprego das Forças Armadas, de forma subsidiária, no enfrentamento a situações emergenciais, com empenho em ações que primariamente cabem a outras instituições estatais.
Referências
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- Luciana Cingolani ainda apresenta outras dimensões da capacidade estatal — como a institucional, a coercitiva, a fiscal, a transformativa, a legal e a política, que não são objeto deste estudo. Luciana Cingolani, “The State of State Capacity: a review of concepts, evidence and measures”, UNU‐MERIT Working Paper Series, Maastricht University, no. 053, out., p. 1-58, 2013.
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- Apesar de ainda não possuir eficácia comprovada cientificamente, é um dos medicamentos que vem sendo utilizados no tratamento da COVID-19.
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O Ten Cel Maurício Gröhs, do Exército Brasileiro, é aluno do Curso de Altos Estudos Militares, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos da ECEME e especialista em Logística Militar Terrestre pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO).
O Maj Eduardo Luiz Biavaschi, do Exército Brasileiro é aluno do Curso de Altos Estudos Militares, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). É mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos da ECEME e especialista em Operações Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO).
A Prof.a Dra. Karina Furtado Rodrigues é doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV EBAPE). É professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (IMM/ECEME).
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