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Quem é o chefe?

Definindo a relação civil-militar no século XXI

 

Ten Cel Kevin F. Krupski, Exército dos EUA

 

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Gerry Broome, Associated Press

Em meados de 2020, estudiosos renomados das relações civis-militares debateram publicamente o papel das Forças Armadas caso um comandante em chefe em exercício se recusasse a deixar o cargo após perder uma eleição.1 Infelizmente, os acontecimentos de 6 de janeiro de 2021 comprovaram o equilíbrio precário da relação civil-militar nos Estados Unidos da América (EUA). Esse debate é exacerbado por uma sociedade afastada dos conflitos que os líderes eleitos são autorizados a conduzir pelo público, com implicações preocupantes para a democracia estadunidense.2 Esses desafios reforçam o apelo de Risa Brooks para o desenvolvimento de uma nova estrutura de profissionalismo militar.3 Ao ingressar em uma era de competição entre grandes potências e crescente polarização política, as Forças Armadas devem decidir como irão interagir com o restante do sistema político dos EUA.

O Presidente Abraham Lincoln

Os papéis da alta liderança militar e seus homólogos civis remontam aos poderes constitucionais, bem como às tradições estabelecidas ao longo da história do país.4 Além de preservar os valores da república, a articulação dessa relação tem implicações para a eficácia das decisões estratégicas na busca pelos interesses nacionais. As Forças Armadas são mais do que simplesmente um agente de seus principais civis. A descrição mais precisa dessa relação é a de principal-gestor.

A relação civil-militar

À primeira vista, a relação civil-militar é uma proposição simples: os civis estão sempre certos, e sua autoridade é absoluta. Os Artigos Antifederalistas explicam os receios que levaram a tal conclusão, e os Artigos Federalistas expõem, acertadamente, como a nova república garantiria essa proposição.5 Esse é um dos dilemas mais fáceis da história dos EUA. Os casos de George McClellan e Douglas MacArthur desafiando Abraham Lincoln e Harry Truman são truísmos tão simples que provocam muito poucos argumentos quanto aos méritos das elites das Forças Armadas em contraste com as elites civis. No entanto, a relação permanece complexa e abstrata. A forma como os civis administram as Forças Armadas, a forma como as Forças Armadas assessoram e em que áreas lhes é atribuído menor escopo de supervisão são questões que confundem a situação. Da mesma forma, a assimetria de informação entre as elites militares e as autoridades civis, agravada por ideais e experiências culturais cada vez mais distintos, complica ainda mais essa relação.6

Portanto, o debate sobre a relação civil-militar envolve, intrinsecamente, a discussão sobre como esses dois atores interagem. Há mais de duas décadas, Richard Kohn observou que as Forças Armadas começaram a se opor ativamente às agendas de suas autoridades civis e a promover sua própria agenda militar.7 Conhecimento e confiança compõem a lacuna no nível de elite, e isso é exacerbado pela liderança civil que costuma exagerar as capacidades militares.8 As declarações das elites militares podem afetar a opinião pública, e, assim como a mídia, os grupos de interesse e a opinião pública, as Forças Armadas têm um papel de influência na formulação de políticas, embora a forma como desempenham esse papel esteja sujeita à interpretação.9 Parafraseando Aristóteles, as Forças Armadas devem liderar e serem lideradas no processo político que as rege.10 Douglas Bland acredita que isso se assemelha a uma divisão do trabalho, em que responsabilidades e controle são compartilhados entre militares e civis com base no tipo de regime.11 Enquanto isso, James Burk queixa-se de que todas as teorias das relações civil-militares são incompletas, propondo que qualquer teoria unificadora carece de consenso entre níveis de análise distintos.12 O debate ultrapassou o modelo de controle civil objetivo das Forças Armadas por meio da profissionalização dos oficiais, proposto por Samuel Huntington, e do modelo de “forças policiais”, de Morris Janowitz, nos últimos 60 anos.13 Essa proposição de controle civil é mais um processo do que um fato, cultivado ao longo de sucessivas gerações de elites militares e civis, reconhecendo que “a defesa nacional eficaz requer harmonia social, política e militar”.14

Modelo de agência nas relações civis-militares de Feaver

A conceituação de Peter Feaver dessa relação utiliza a teoria da agência, que descreve a relação entre principais e seus agentes. As assimetrias de informação e as exigências concorrentes dos atores militares e civis criam um problema de principal-agente. Considerando isso, o monitoramento deve reduzir o risco moral inerente às situações em que as Forças Armadas agem em interesse próprio, contrariando os desejos do principal. A conclusão de Feaver é que, sem um monitoramento eficaz, as Forças Armadas “se esquivarão”, seguindo suas próprias preferências em vez das do principal. As Forças Armadas “funcionam” quando estão alinhadas com os principais civis, o que é mais provável quando estes últimos dedicam esforços extras ao monitoramento dos agentes militares. Por exemplo, Feaver argumenta que a cisão entre as Forças Armadas e o governo Clinton foi causada por líderes militares que tentaram fazer com que as considerações militares, como a Doutrina Weinberger, fossem primordiais para as considerações políticas em uma era pós-Guerra Fria.15 Algumas implicações decorrem da adoção dessa postura quanto ao relacionamento.

Em primeiro lugar, o modelo de agência retrata com precisão as relações transacionais do mercado privado. Em geral, há diversos possíveis “agentes” que o principal pode utilizar, e há um conflito de objetivos inerente entre o principal e os agentes. Além disso, essa assimetria de informação permite que os agentes usem seus conhecimentos para obter ganhos às custas de seu principal. O monitoramento torna-se, portanto, uma ferramenta do principal para alinhar os agentes. O problema de aplicar isso à relação civil-militar é que os serviços e assessoramento militares não são adquiridos em algum lugar semelhante a um mercado — as Forças Armadas já estão lá quando um principal civil ocupa o cargo. Não há competição entre as Forças Armadas para que se tornem agentes. Além disso, o modelo de agência retrata negativamente o comportamento moral e coletivo do agente como egoísta, ignorando a lealdade, o orgulho e a identificação do trabalhador com a missão e os objetivos da organização, além de desconsiderar a possibilidade de comportamento oportunista por parte dos principais.16 Embora o modelo de agência possa ser eficaz para descrever como o governo terceiriza a defesa para contratados militares privados em uma era de aumento das privatizações, é mais estranho quando aplicado a servidores públicos que o governo já “constituiu”.

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A Figura 1 apresenta um conceito da teoria da agência que situa o principal no centro de um mercado com múltiplos agentes capazes de agir em seu nome. O principal só pode escolher um dos agentes — por isso as linhas sólidas — mas esse agente tem seus próprios objetivos, que podem não estar alinhados com os do principal. Nesse modelo, a força do movimento está voltada para fora. Ou seja, o único fator que mantém os agentes e resultados da relação alinhados com os desejos do principal é o controle que este decide manter sobre o agente. Sem a atenção do principal, não há nada que mantenha a integridade desse sistema. Todas as forças são centrífugas, afastando-se do centro.

Em segundo lugar, os principais civis são eles próprios agentes do povo estadunidense, contratados por meio da Constituição dos EUA. Um princípio importante das relações civis-militares aplica-se à forma como essa relação se encaixa em modelos de regime específicos. Como então, um deles se torna um principal e outro um agente? O “contrato master” descreve os papéis das principais instituições do governo dos EUA, mas é cauteloso em conceder a um único poder do governo a autoridade maior normalmente reservada a um principal. O Poder Legislativo, possivelmente o poder mais influente, recebe apenas parte da autoridade sobre as Forças Armadas, enquanto o presidente detém o restante. Algo que complica ainda mais a questão é o papel dos governadores de estados, considerando-se sua autoridade sobre suas respectivas guardas nacionais. Simplificando, “O Povo” continua sendo o principal supremo na política estadunidense, mas seus representantes nas esferas legislativa, executiva e judiciária nos níveis federal e estadual reivindicam a legitimidade para falar em seu nome. As Forças Armadas devem, portanto, dialogar com esses múltiplos principais, bem como com o povo dos EUA.

Por último, o modelo de agência ignora um fato simples: o governo é diferente dos mercados privados. Aplicar práticas privadas a alguns empreendimentos públicos é como confundir laranjas com bananas.17 Pouco se discute como os valores públicos moldam as decisões e afetam a relação entre principais e agentes. A segurança do Estado não é apenas um objetivo de ambos os atores, mas também de seu principal supremo. Se o governo executa uma tarefa, isso provavelmente se deve à omissão do mercado em cumpri-la nos limites da estrutura do mercado ou a valores inerentes ao regime e mantidos pelo povo. O modelo de agência não reflete essa dinâmica com precisão.

As Forças Armadas como gestores

A teoria do stewardship oferece um conceito melhor para descrever as relações civis-militares. Essa teoria “define situações em que os gestores não são motivados por objetivos pessoais, mas, na verdade, suas motivações estão alinhadas com os objetivos de seus principais”, e os atributos psicológicos pessoais e as caraterísticas organizacionais conduzem à sua escolha de ser um gestor (steward) em vez de um agente.18 Semelhante à teoria da agência, a teoria do stewardship concentra-se no uso de ferramentas como monitoramento, confiança, reputação, incentivos e sanções em relações contratuais, a fim de alcançar o alinhamento de objetivos entre as partes do contrato. No entanto, a teoria do stewardship é um contraponto do comportamento organizacional às teorias de ação racional da gestão.19 Enquanto a teoria da agência pressupõe divergência de objetivos, a teoria do stewardship pressupõe convergência, parcialmente baseada em interesses coletivos compartilhados. Em vez de se concentrar em soluções de curto prazo centradas em uma relação de soma zero, a teoria do stewardship pressupõe que “as relações contratuais de longo prazo são desenvolvidas com base na confiança, reputação, objetivos coletivos e envolvimento, quando o alinhamento é um resultado da reciprocidade relacional” e “os gestores são motivados por recompensas intrínsecas, como confiança, valorização da reputação, reciprocidade, autonomia, nível de responsabilidade, satisfação na função, estabilidade e segurança no cargo e alinhamento à missão”.20 Isso exige uma visão muito mais de longo prazo, com a compreensão de um relacionamento de prazo mais longo. Necessariamente, isso requer custos de transação mais elevados no início da relação, especialmente por parte do principal, “envolvendo o gestor na formulação do problema, tomada de decisão conjunta, troca de informações e, geralmente, buscando compreender as necessidades do gestor”, mas aumentando a confiança e reduzindo a necessidade de monitoramento invasivo a longo prazo.21

A teoria do stewardship se presta mais à descrição da relação entre o governo e os órgãos que se percebem como promotores do bem público. Estudiosos identificaram a relação única entre as organizações sem fins lucrativos e os governos com os quais colaboram, em relacionamentos que se assemelham mais com stewardship do que com agência.22 Da mesma forma, os membros das Forças Armadas compartilham o desejo de servir ao bem público. Uma organização que se orgulha do ethos de serviço abnegado e sacrifício pessoal compartilha, intrinsecamente, os mesmos objetivos de seus principais civis.

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A Figura 2 apresenta uma visão da teoria do stewardship que situa os objetivos no centro do sistema. Esses objetivos têm sua própria força gravitacional, fazendo com que as partes e as ações orbitem ao seu redor. O principal e o gestor estão no mesmo nível, unidos por processos de tomada de decisão conjunta e trocas de informações com menos entraves. No anel externo, há fatores como confiança e estabilidade, que exercem pressão sobre cada uma das partes para que convirjam para os mesmos objetivos. Todas as forças são centrípetas, puxando para o centro.

Isso representa um conceito muito diferente da relação civil-militar. As Forças Armadas não estão atuando nem se esquivando em relação aos objetivos dos principais civis. As Forças Armadas atuam como um gestor da defesa da nação e dos valores da Constituição. Para manter sua reputação, as Forças Armadas devem se policiar de forma rigorosa. Não fazê-lo pode resultar em maior supervisão e conduzir a um caminho semelhante ao conceito de controle subjetivo de Huntington, que impõe restrições legais e institucionais à autonomia militar.23 As Forças Armadas não têm incentivo para se esquivar, pois isso só levaria a uma diminuição da reputação. Quando isso acontece, os danos à reputação e confiança são maiores do que qualquer ganho obtido ao se esquivar. Com frequência, a literatura civil-militar situa a teoria do “Comando Supremo” de Eliot Cohen no modelo de agência, percebendo que os presidentes se intrometem e dispensam seus agentes militares até encontrarem um que conduza uma guerra da forma que o político deseja.24 Na realidade, as relações generais/presidentes bem-sucedidas não dispunham de mais métodos de fiscalização para garantir a conformidade com o imperativo político do que as relações malsucedidas, o que o modelo de agência exigiria. Em vez disso, os generais bem-sucedidos eram os bons gestores, compartilhando os objetivos de seus presidentes por meio de colaboração deliberada.

Os objetivos que ancoram o modelo de stewardship podem variar com base nos três níveis de poder do regime na democracia estadunidense: soberania fundamental, poderes primários e processo de formulação de políticas.25 No primeiro nível, todos os atores podem concordar que o soberano maior é o povo. No segundo nível, as Forças Armadas devem interpretar os objetivos do regime a partir de como os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário exercem seus poderes específicos. No terceiro nível, as Forças Armadas se veem como um dos muitos atores envolvidos no planejamento, iniciação e mobilização de apoio a uma política. À medida que se olha para cada nível para identificar os objetivos — ou melhor defini-los, como no termo nebuloso “segurança do Estado” —, as respostas passam do concreto ao abstrato e estão abertas a um maior debate, mas ainda estão presentes.

Uma das tarefas mais importantes das Forças Armadas é a manutenção da confiança de seus principais civis e do público estadunidense. Isso é mais importante sempre que há uma transição entre os principais. É preciso que mais tempo seja dedicado ao desenvolvimento dessa confiança nas fases iniciais, antes que algo significativo ocorra. A confiança extrapola as simples comparações entre instituições. O principal deve confiar que os objetivos do gestor estão alinhados.

Necessidade de um novo modelo

Os velhos conceitos da relação militar dificultam a forma como os integrantes da alta liderança militar assessoram seus superiores civis. William Rapp levantou exatamente essa questão, sublinhando seis realidades da formulação de políticas de segurança nacional:

  • Raramente há diretrizes claras para políticas.
  • O processo é iterativo em vez de linear.
  • As decisões políticas raramente ocorrem em tempo hábil.
  • A confiança mútua não ocorre automaticamente e é resultado de relações pessoais construídas ao longo do tempo.
  • Os líderes civis e militares precisam uns dos outros.
  • A divisão civil-militar desconsidera a estratégia.26

Essas realidades são problemáticas porque diferem do modelo de agência. No entanto, estão muito mais alinhadas com o modelo de stewardship centrípeto. As realidades de Rapp se apoiam em relacionamentos de longo prazo e aceitam que as pessoas no processo de formulação de políticas valorizem suas reputações mais do que uma transação individual, como defendido pelo modelo tradicional. Além disso, o diálogo necessário no modelo de stewardship aumenta o entendimento e reduz a divisão civil-militar para que cada lado compreenda as capacidades do outro.

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Na segurança nacional, há um objetivo comum entre as lideranças civil e militar, e a falta de diálogo franco pode obscurecer esse fato. Isso pode ser combatido pelos líderes militares que se esforçam para ser gestores eficazes.

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Acolher o modelo de stewardship pode mediar o problema das seis realidades de Rapp. Os princípios da tomada de decisão conjunta e do intercâmbio de informações resolvem a primeira, segunda e terceira realidades de Rapp. As relações habituais de longo prazo enfatizadas no modelo de stewardship melhoram a quarta e quinta realidades de Rapp. Na segurança nacional, há um objetivo comum entre as lideranças civil e militar, e a falta de diálogo franco pode obscurecer esse fato. Isso pode ser combatido pelos líderes militares que se esforçam para ser gestores eficazes.

Implicações para a relação civil-militar

Esta análise pode oferecer recomendações sobre como a dinâmica civil-militar deve melhorar. O ônus deve recair sobre as Forças Armadas para que passem de agentes para gestores. Ainda existe o ditado que afirma que o principal civil tem a autoridade maior, bem como o direito de estar errado. Portanto, o ônus não pode recair sobre o principal. Deve recair sobre o gestor. Aceitar sua condição de gestor obriga as Forças Armadas a reconhecerem o ônus que carregam para assegurar relações civis-militares saudáveis.

Primeiro, o modelo de stewardship centrípeto é uma nova forma de os oficiais compreenderem as relações civis-militares. Rapp argumenta que os oficiais mais antigos não carecem de coragem moral, mas que suas vozes são limitadas por uma cultura que enfatiza a submissão e a evasão de funções junto a líderes de pensamento civis. Ele afirma que “as relações pessoais, a experiência e a educação são importantes porque conferem peso e credibilidade a opiniões dissidentes”.27 O modelo de stewardship centrípeto deveria passar a integrar o treinamento de oficiais desde cedo, pois compreendê-lo pode mudar a cultura que atualmente pressupõe um modelo de agência em desacordo com os principais civis. Assim como as teorias de Huntington, Janowitz e Feaver afetaram a forma como gerações de oficiais percebem seu papel na República, o modelo de stewardship também é capaz de moldar as percepções da próxima geração.

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Poucos líderes militares — caso existam — alegariam não ser gestores da profissão das armas, mas talvez não compreendam totalmente o que é stewardship ou suas ações podem estar limitadas por caraterísticas estruturais e psicológicas que desencorajam o comportamento de stewardship.

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Segundo, as Forças Armadas devem identificar os fatores capazes de promover o stewardship no Departamento de Defesa. Existem antecedentes estruturais e psicológicos que podem incentivar o stewardship em uma organização.28 Os líderes precisam identificar esses antecedentes para que as Forças Armadas impulsionem a mudança organizacional. Poucos líderes militares — caso existam — alegariam não ser gestores da profissão das armas, mas talvez não compreendam totalmente o que é stewardship ou suas ações podem estar limitadas por caraterísticas estruturais e psicológicas que desencorajam o comportamento de stewardship. Podem ser, entre outras, políticas burocráticas, narrativas políticas ou sociais, estruturas de incentivo desalinhadas ou uma série de outros fatores.29

Terceiro, as Forças Armadas devem retomar o desenvolvimento de sua confiança e reputação junto aos principais civis. O “pacto” entre o povo, o presidente, o Congresso e as Forças Armadas dos EUA está sob constante renegociação dependente da confiança.30 As enquetes populares sobre a confiança na instituição militar padecem de uma tendência a avaliar quais tarefas as Forças Armadas executam em vez de como as conduzem. Portanto, as Forças Armadas não são um bom instrumento para medir isso. Se a liderança civil não consegue confiar que os generais estão — nos limites impostos pela Constituição — “no mesmo time”, então as Forças Armadas falharam. No debate que levou à escalada de tropas determinada pelo Presidente Barack Obama no Afeganistão, ele não parecia confiar nos conselhos de seus generais, sentindo que estavam manipulando suas opções.31 Da mesma forma, as Forças Armadas devem evitar conquistar a confiança com base em qual partido político está no poder.32 Por fim, o tom da negociação no acordo civil-militar é mais importante do que quem o controla, e os líderes militares devem demonstrar liderança ao enfatizar os princípios do modelo de stewardship em vez de se apresentarem como agentes em competição com seus principais civis.33

A divisão entre as Forças Armadas e a sociedade estadunidense é preocupante. As Forças Armadas conseguiram aumentar a confiança do público desde a Guerra do Vietnã devido a reformas, marketing e sucesso no campo de batalha.34 No entanto, a confiança nas Forças Armadas varia inversamente ao contato. Menos de 50% dos integrantes das elites civis em postos do governo que não prestaram serviço militar tinham confiança nas Forças Armadas.35 Trata-se de uma crise de “guetização” que reduz a reciprocidade entre as instituições.36 As sugestões de Colford e Sugarman que visam a uma maior “polinização cruzada” entre instituições civis e militares são um começo para eliminar essa divisão.37 No policiamento, isso condiz com o conceito de policiamento comunitário, em que os policiais se envolvem proativamente com a comunidade, em vez de simplesmente responder quando ocorrem crimes. Para as Forças Armadas, o “envolvimento comunitário” força a interação em um nível substancial.

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Estudos de caso aprofundados que detalhem como uma relação civil-militar positiva possibilitou o alcance de objetivos democráticos ou de segurança nacional são necessários para esclarecer como determinadas forças podem aproximar as Forças Armadas e seus principais civis em vez de distanciá-los.

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As Forças Armadas devem preparar-se ativamente para as transições na liderança civil. Sob a teoria do stewardship, novos presidentes, congressistas e nomeados civis exigirão maior envolvimento no início de seus mandatos. Isso não é um ônus; é uma oportunidade. Um maior envolvimento desde o início deve ter o intuito de alinhar os objetivos com os principais civis recém-eleitos ou nomeados. O fato de que, atualmente, muitos principais civis têm muito pouca experiência militar torna isso ainda mais importante. As Forças Armadas devem envolver ativamente seus líderes e receber diretrizes. Não há necessidade de enquadrar ameaças. Os líderes militares devem entender que suas questões podem ser apenas um dos muitos interesses nacionais que seus líderes estão tentando abordar. Talvez grande parte dos fracassos associados ao Afeganistão tenha relação com a falta de consenso sobre quais objetivos buscávamos alcançar.

Conclusão

Uma abordagem do stewardship pode ser o ideal, embora muitas vezes possamos observar as Forças Armadas atuando como agentes. Portanto, o desafio é fazer com que aqueles propensos a atuar como agentes sejam mais orientados para a coletividade e atuem como gestores nacionais/de defesa. As Forças Armadas devem tornar-se gestores a fim de melhorar a relação civil-militar.

A descrição da relação civil-militar é um conceito abstrato com implicações tangíveis. O mais importante é como impulsiona a discussão da profissão das armas. Teoria e estudo impulsionam como a profissão ensina seus próprios integrantes e perpetua seu próprio senso de corporação. Utilizar um paradigma de agência para descrever como as Forças Armadas se encaixam no sistema político dos EUA é prejudicial ao desenvolvimento da profissão. Em vez disso, os oficiais militares devem compreender, ainda no início de seu desenvolvimento, como se encaixam no contexto maior da burocracia, do governo e da sociedade estadunidense. Isso define melhor como os oficiais devem lidar com as áreas cinzentas que enfrentarão em suas carreiras. Mais importante ainda, torna os oficiais mais preparados para lidar com os dilemas de segurança nacional no século XXI.

Estudos futuros devem se concentrar em testar a teoria do stewardship em todo o Departamento de Defesa. Certas organizações nas Forças Armadas, sem dúvida, apresentam níveis mais elevados de stewardship do que outras. Identificá-las e determinar como isso evolui pode apontar novas direções para a profissão militar e servir como lição para que a liderança civil entenda como cultivar uma melhor relação com as Forças Armadas. Estudos de caso aprofundados que detalhem como uma relação civil-militar positiva possibilitou o alcance de objetivos democráticos ou de segurança nacional são necessários para esclarecer como determinadas forças podem aproximar as Forças Armadas e seus principais civis em vez de distanciá-los.


Referências

 

  1. Jim Golby e Kori Schake, “The Military Won’t Save Us – and You Shouldn’t Want Them To”, Defense One, 12 August 2020, acesso em 1 nov. 2022, https://www.defenseone.com/ideas/2020/08/military-wont-save-us-and-you-shouldnt-want-them/167661/; John Nagl e Paul Yingling, “‘… All Enemies, Foreign and Domestic’: An Open Letter to Gen. Milley”, Defense One, 11 August 2020, acesso em 1 nov. 2022, https://www.defenseone.com/ideas/2020/08/all-enemies-foreign-and-domestic-open-letter-gen-milley/167625/.
  2. Andrew Bacevich, Breach of Trust: How Americans Failed Their Soldiers and Their Country (New York: Metropolitan Books, 2013), p. 193.
  3. Risa Brooks, “Paradoxes of Professionalism: Rethinking Civil-Military Relations in the United States”, International Security 44, no. 4 (Spring 2020): p. 7-44, https://doi.org/10.1162/isec_a_00374.
  4. Para fins de brevidade e simplicidade, “Forças Armadas” refere-se a todas as Forças Singulares, e “principais civis” refere-se a líderes eleitos e nomeados tanto no Poder Executivo quanto no Legislativo. As Forças Armadas são um conglomerado de burocracias díspares com missões variadas que competem constantemente entre si, enquanto a posição real dos “principais civis” pode ser difícil de discernir em um ambiente político cada vez mais polarizado. Para ler outras discussões sobre o tema, veja James Q. Wilson, Bureaucracy (New York: Basic Books, 1991); ou Bartholomew H. Sparrow, “Who Speaks for the People? The President, the Press, and Public Opinion in the United States”, Presidential Studies Quarterly 38, no. 4 (December 2008): p. 578-92, https://doi.org/10.1111/j.1741-5705.2008.02665.x.
  5. Alexander Hamilton, “Federalist Papers: Primary Documents in American History”, nos. 10, 24-28, 69, Library of Congress, acesso em 8 nov. 2022, https://guides.loc.gov/federalist-papers/full-text.
  6. Assimetria de informação é um princípio central da teoria da agência. No contexto civil-militar, as elites militares têm um conhecimento muito maior sobre as operações militares do que os civis que as dirigem na condução dessas operações. O número decrescente de veteranos no Congresso só agrava esse dilema. Mesmo sem essa tendência, o campo de batalha moderno é mais complexo e dinâmico do que nunca, tornando ainda mais difícil para as elites civis compreender plenamente ou permanecer em sintonia com as operações militares em comparação às elites militares.
  7. Richard H. Kohn, “Out of Control: The Crisis in Civil-Military Relations”, The National Interest, no. 35 (1994): p. 3-17.
  8. Rosa Brooks, “Civil-Military Paradoxes”, em Warriors & Citizens: American Views of our Military, ed. Kori Schake and Jim Mattis (Stanford, CA: Hoover Institution Press, 2016), p. 21-68.
  9. James Golby, Peter Feaver e Kyle Dropp, “Elite Military Cues and Public Opinion About the Use of Military Force”, Armed Forces & Society 44, no. 1 (January 2018): p. 44-71, https://doi.org/10.1177/0095327X16687067.
  10. Aristotle, The Ethics of Aristotle: The Nicomachean Ethics (London: Penguin, 1976), p. 275-9.
  11. Douglas L. Bland, “A Unified Theory of Civil-Military Relations”, Armed Forces & Society 26, no. 1 (Fall 1999): p. 7-25, https://doi.org/10.1177/0095327X9902600102.
  12. James Burk, “Theories of Democratic Civil-Military Relations”, Armed Forces & Society 29, no. 1 (Fall 2002): p. 7-29, https://doi.org/10.1177/0095327X0202900102.
  13. Samuel P. Huntington, The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil-Military Relations (Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1957); Morris Janowitz, The Professional Soldier: A Social and Political Portrait, reissue edition (New York: Free Press, 18 July 2017).
  14. Douglas L. Bland, “Patterns in Liberal Democratic Civil-Military Relations”, Armed Forces & Society 27, no. 4 (Summer 2001): p. 525-40, https://doi.org/10.1177/0095327X0102700402.
  15. Peter Feaver, “Domestic Politics and the Long War”, in Lessons for a Long War: How America Can Win on New Battlefields, ed. Thomas Donnelly and Frederick Kagan (Washington, DC: American Enterprise Institute, 2010), p. 11-32.
  16. Lex Donaldson, “The Ethereal Hand: Organizational Economics and Management Theory”, Academy of Management Review 15, no. 3 (July 1990): p. 369-81.
  17. Paul H. Appleby, “Government Is Different”, in Classics of Public Administration: Seventh Edition, ed. Jay Schafritz and Albert Hyde (Boston: Wadsworth, 2012), p. 122-26.
  18. James H. Davis, F. David Schoorman e Lex Donaldson, “Davis, Schoorman, and Donaldson Reply: The Distinctiveness of Agency Theory and Stewardship Theory”, Academy of Management Review 22, no. 1 (July 1997): p. 21, https://doi.org/10.5465/amr.1997.9707180258.
  19. Ibid.
  20. David M. Van Slyke, “Agents or Stewards: Using Theory to Understand the Government-Nonprofit Social Service Contracting Relationship”, Journal of Public Administration Research and Theory 17, no. 2 (2007): p. 157-87, https://doi.org/10.1093/jopart/mul012.
  21. Ibid.
  22. Ibid.
  23. Huntington, The Soldier and the State, p. 690.
  24. Eliot Cohen, Supreme Command: Soldiers, Statesmen, and Leadership in Wartime (New York: Free Press, 2002), p. 4-8.
  25. James W. Ceasar, “In Defense of Separation of Powers”, in Separation of Powers: Does It Still Work?, ed. Robert A. Goldwin and Art Kaufman (Washington, DC: American Enterprise Institute, 1986), p. 168-93.
  26. William E. Rapp, “Civil-Military Relations: The Role of Military Leaders in Strategy Making”, Parameters 45, no. 3 (Autumn 2015): p. 13-26.
  27. William E. Rapp, “Ensuring Effective Military Voice”, Parameters 46, no. 4 (Winter 2017): p. 13-26.
  28. Morela Hernandez, “Toward an Understanding of the Psychology of Stewardship”, Academy of Management Review 37, no. 2 (2012): p. 172-93, https://doi.org/10.5465/amr.2010.0363.
  29. Para um ótimo exemplo de como as narrativas podem afetar a forma como as Forças Singulares enxergam a si próprias e o que pensam que devem fazer, veja Conrad Crane, Avoiding Vietnam: The U.S. Army’s Response to Defeat in Southeast Asia (Carlisle, PA: Strategic Studies Institute, 2002), p. 14-19.
  30. Mackubin Thomas Owens, “Is Civilian Control of the Military Still an Issue?”, in Schake and Mattis, Warriors & Citizens, p. 69-96.
  31. Bob Woodward, Obama’s Wars (New York: Simon & Schuster, 2010), p. 324-88.
  32. Para mais evidências e análises, veja Jason K. Dempsey, Our Army: Soldiers, Politics, and American Civil-Military Relations (Princeton, NJ: Princeton University Press, 2010), p. 152-92.
  33. Mackubin Thomas Owens, US Civil-Military Relations after 9/11: Renegotiating the Civil-Military Bargain (New York: Continuum, 2011), p. 158-70.
  34. David King e Zachary Karabell, The Generation of Trust: Public Confidence in the U.S. Military Since Vietnam (Washington, DC: AEI Press, 2003), p. 80-85.
  35. Peter Feaver e Richard H. Kohn, eds., Soldiers and Civilians: The Civil-Military Gap and American National Security, BCSIA Studies in International Security (Cambridge, MA: MIT Press, 2001), p. 459-68.
  36. A redução na porcentagem de estadunidenses que servem nas Forças Armadas juntamente com a fusão de bases devido a decisões de realinhamento e fechamento criaram bolsões de comunidades militares segregadas do resto da sociedade. Essa separação física da maioria dos estadunidenses pode representar uma economia financeira, mas também impede o contato entre a sociedade e as comunidades militares que poderia promover a integração, o diálogo e a compreensão.
  37. Matthew Colford e Alec J. Sugarman, “Young Person’s Game: Connecting with Millenials”, in Schake and Mattis, Warriors & Citizens, p. 245-64.

 

O Ten Cel Kevin Krupski, do Exército dos EUA, é professor de Ciência Militar no Dickinson College. É formado pela Academia Militar dos EUA, tem mestrado em Administração Pública e doutorado pela Maxwell School, Syracuse University. Serviu com a 25a Divisão de Infantaria, a 10a Divisão de Montanha e a 3a Divisão de Infantaria. Também lecionou Política dos EUA e Política Externa na Academia Militar dos EUA, em West Point.

 

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Janeiro-Junho 2023