Military Review

 

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Todo poder é local MacArthur

Compreendendo o poder disciplinar para mobilizar a população

 

Maj Robert G. Rose, Exército dos EUA

 

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Líderes comunitários afegãos, clérigos (mulás) e anciãos tribais se reúnem para proferir decisões vinculantes baseadas em tradições legais religiosas e tribais

Enquanto servia como planejador financeiro de combate a ameaças no Afeganistão em 2018, encontrei um problema que exemplificava as falhas do governo afegão. As Forças de Segurança Nacional do Afeganistão operavam inúmeros postos de controle que extorquiam dinheiro dos motoristas. A seu bel-prazer, cobravam “impostos” que alimentavam redes de corrupção. O Talibã também operava postos de controle, mas esses tinham taxas aduaneiras transparentes, e a receita financiava, em grande parte, as operações. A organização até fornecia recibos, que eram reconhecidos pelos postos de controle seguintes. Por que um grupo de afegãos era tão corrupto e o outro tão eficiente do ponto de vista administrativo?

Bernard Fall afirmou que “quando um país está sendo subvertido, não está sendo superado em combate; está sendo superado na administração”.1 Reconheceu que, no Vietnã, os comunistas criaram uma estrutura administrativa paralela, que combinava violência com ação política.2 Tanto no Vietnã quanto no Afeganistão, as insurgências criaram sistemas administrativos eficazes, construídos sobre estruturas tradicionais de base. Essas insurgências sabiam como mobilizar o poder da população por meio de sistemas locais difusos, que incentivavam a participação. A combinação de feedback local e a necessidade de competir com o governo disciplinou os insurgentes na criação de aparatos administrativos eficazes. Esses sistemas enraizados localmente explicaram a eficiência dos pontos de controle do Talibã.

Enquanto isso, o governo do Afeganistão, assim como a República do Vietnã anteriormente, era excessivamente centralizado. Faltava-lhe um mecanismo de feedback da população local para garantir que representasse sua vontade. O apoio externo permitiu que regimes enfraquecidos sobrevivessem e os protegeu da pressão por reforma. Com fluxos de ajuda e sem regulação do poder, a corrupção cresceu. Os governos do Vietnã e do Afeganistão, bem como seus patrocinadores estadunidenses, enxergavam o poder por uma lente míope, de cima para baixo, centralizada. Essa perspectiva criou um vazio conceitual, no qual não conseguiam reconhecer que estavam perdendo a guerra.

Devido à nossa incapacidade de compreender o contexto do poder no Afeganistão e no Vietnã, perdemos nossas duas guerras mais longas. Não podemos ignorar deliberadamente as lições do Afeganistão, como fizemos com o Vietnã. Para aprender a combater futuras insurgências de forma eficaz, o Exército deve inverter a famosa citação de Carl von Clausewitz e reconhecer que a política é a continuação da guerra por outros meios. O Exército pode conceituar melhor como o poder flui através de aparatos administrativos e interage com os indivíduos por meio da ideia de poder disciplinar.

Compreendendo a insurgência pelo prisma do poder disciplinar

Para evitar outra derrota, o Exército dos Estados Unidos da América (EUA) precisa conceituar o poder de forma diferente. Deve reconhecer que o poder está na população. Quando Jerônimo, irmão de Napoleão, enfrentou uma revolta na Westfália, enviou a seu irmão uma mensagem em que dizia: “Estou em uma situação difícil”. Napoleão respondeu: “Pelo amor de Deus, irmão, use suas baionetas”. Jerônimo retorquiu: “Irmão, é possível fazer qualquer coisa com as baionetas — menos sentar nelas”.3 Sem exterminar a população ou mobilizar soldados suficientes para vigiar cada membro da população, as baionetas por si sós não são capazes de derrotar uma insurgência. Os contrainsurgentes precisam mobilizar a população. Como disse Jean-Jacques Rousseau, “O mais forte nunca é forte o suficiente para ser o mestre para sempre, a menos que transforme sua força em direito e a obediência em dever”.4 Quando a população está do lado do governo, serve como um milhão de olhos atentos empurrando os insurgentes para as margens da sociedade. Os insurgentes deixam de ser peixes nadando na água da população. A população está cozinhando o peixe. O filósofo Michel Foucault chamou isso de poder disciplinar.

Foucault teorizou dois métodos históricos de poder sobre uma população: o soberano e o disciplinar. No poder soberano, o chefe de Estado é a unidade de poder.5 Todos os olhos estão voltados para o soberano. Ele governa como em um espetáculo. Seu poder é glorificado com pompa e circunstância. Aqueles que transgridem seu governo são transformados em exemplos públicos. O público assiste a um criminoso não apenas sendo executado, mas arrastado e esquartejado de forma agonizante em praça pública.

O poder militar convencional é um produto do poder soberano. Pressupõe uma unidade de poder nas forças convencionais e conta com o espetáculo do arsenal de armas. É concebido para causar medo nos inimigos, dissuadi-los e, quando necessário, forçá-los.

O poder soberano funciona na guerra convencional, mas fracassa na contrainsurgência. O uso do poder nu das Forças Armadas não é capaz de subjugar um povo para sempre. A população consegue perceber suas deficiências. Depois que o bombardeiro passa ou a patrulha regressa ao seu posto avançado, o poder desaparece. O poder soberano gera desprezo e rebelião.

O poder disciplinar se apoia nos mecanismos inversos. Reconhece que o poder está nos indivíduos e tenta transformá-los em cidadãos obedientes e produtivos. Em vez de estarem voltados para o soberano, agora os olhares estão voltados para a população. O poder disciplinar funciona pela aplicação discreta, porém certa, da força. É uma forma de poder que se estende do coração do Estado até os vasos capilares de seus sujeitos.

Como exemplo de como o poder disciplinar funcionava, Foucault usou o panóptico, uma prisão projetada por Jeremy Bentham no fim do século XVIII. Contrastando com prisões escuras e tortuosas, o panóptico tinha uma torre de vigilância no centro com um círculo de celas bem iluminadas ao seu redor. A qualquer momento, o guarda poderia estar observando um prisioneiro, e cada prisioneiro tinha certeza de que qualquer transgressão seria vista e punida rapidamente. O panóptico foi uma forma sutil de poder que substituiu a brutalidade pela certeza.6

Para garantir a conexão entre o guarda e os presos, o guarda era colocado no centro, para que se sentisse vulnerável e atado ao destino daqueles que vigiava. O guarda do panóptico era exatamente como as forças contrainsurgentes deveriam ser. David Galula argumentou que “as forças contrainsurgentes eficazes serão forçadas a viver como a população, em barracos se necessário, e isso ajudará a criar laços comuns”.7 O panóptico serve como uma ilustração extrema de como o poder disciplinar funciona e não é replicável em um Estado inteiro.

Alcançar o poder disciplinar sobre uma população requer um sistema descentralizado de vigilância. Foucault explica que o poder disciplinar se enraizou realmente na sociedade com o crescimento da burguesia, que tinha interesse em proteger seus bens e vigiar seus trabalhadores para garantir que estivessem em conformidade com as melhores práticas.8 À medida que o poder da burguesia foi crescendo, criou-se um aparato disciplinar por meio de escolas, censos, clínicas, burocracias e força policial, que monitoravam os indivíduos e os transformavam em cidadãos produtivos cumpridores das leis do Estado. Em um ciclo de feedback, essas instituições dependiam do apoio popular. Como disse Robert Peel, o fundador da Polícia Metropolitana de Londres em 1829, “A capacidade da polícia para desempenhar suas funções depende da aprovação pública da existência, das ações e do comportamento da polícia, bem como da capacidade da polícia para obter e manter o respeito do público”.9

Com seu dedo no pulso da população, a polícia local sempre foi essencial na contrainsurgência, assim como os outros mecanismos descentralizados de poder. Ao escrever sobre as hierarquias paralelas que testemunhou ao combater na Indochina, Jacques Hogard explicou: “O indivíduo está preso a várias redes de hierarquias sociais independentes [...] as redes estão dispostas em diferentes associações conforme sua idade, sexo, profissão, etc.”.10 Da mesma forma, Galula afirmou que “a essência da contrainsurgência pode ser resumida em uma única frase: Construir (ou reconstruir) uma máquina política da população para cima”.11 Esses teóricos compreenderam os meios difusos e locais pelos quais o poder disciplinar opera e podem mobilizar a população para monitorar a si mesma e isolar os insurgentes. No entanto, os contrainsurgentes apoiados pela ajuda externa tendem a usar estruturas de cima para baixo baseadas no poder soberano.

O fracasso centralizado de Saigon

Durante a Guerra do Vietnã, a República do Vietnã criou a oportunidade para uma insurgência ao estabelecer um governo excessivamente centralizado, desconectado dos interesses dos moradores das aldeias rurais.

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Após a saída dos franceses, o Presidente Ngo Dinh Diem, da República do Vietnã, criou um governo altamente centralizado, apoiado em uma teoria de poder soberano que considerava a população como sujeitos em vez de participantes no sistema político.

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Por séculos, o Vietnã elegeu governos locais. Segundo um antigo provérbio, “A ordem do Imperador para na sebe de bambu [da aldeia]”.12 Os franceses mantiveram a estabilidade ao simplesmente acrescentar uma camada administrativa colonial sobre a governança tradicional vietnamita. Para a maioria dos vietnamitas, “governo” sempre significou o conselho da aldeia, e o camponês tinha pouca experiência com qualquer outro tipo de governo.13

No entanto, após a saída dos franceses, o Presidente Ngo Dinh Diem, da República do Vietnã, criou um governo altamente centralizado, apoiado em uma teoria de poder soberano que considerava a população como sujeitos em vez de participantes no sistema político.

Em junho de 1956, Diem substituiu todos os líderes das províncias, distritos e aldeias por funcionários nomeados pelo governo central. Esses funcionários não eram nativos das áreas que administravam. Isso comprometeu o feedback tradicional entre o governo e 80% da população das aldeias. Seus moradores não podiam participar do processo de tomada de decisões políticas e ficavam sujeitos à arbitrariedade central, má administração desconectada e uma explosão de corrupção.14 Do Van Doan, chefe da Província de Long An em 1955, disse que “sob o regime de Diem, a maioria das pessoas era contratada por sua lealdade à família [de Diem], e não por sua capacidade ou disposição para servir o país [...] Como resultado, tanto no exército quanto na administração civil, os funcionários mais importantes eram, na maioria, oportunistas, bajuladores e incompetentes, e a eficácia e a iniciativa do exército e da administração foram destruídas”.15

A situação piorou depois que o Gen Nguyen Khanh derrubou Diem em um golpe em 1963. Ele substituiu funcionários e líderes do exército de todos os escalões por indivíduos leais a ele. Líderes em todo o Vietnã estavam ocupados em provar sua lealdade ou criar intrigas contra Khanh. Os moradores das aldeias foram esquecidos, e as taxas de deserção cresceram à medida que o moral do exército despencava.

O Exército da República do Vietnã (Army of the Republic of Vietnam, ARVN) enfrentou constantemente problemas de deserção e moral devido à política de Saigon de serviço militar por não locais. Os moradores locais vietnamitas eram ligados às suas comunidades e tinham pouco interesse em servir longe de casa e deixar suas famílias desprotegidas e suas lavouras abandonadas.

Aumentando ainda mais os problemas do ARVN, a maioria dos oficiais vietnamitas vinha da elite urbana.16 O perfil urbano dos oficiais criou uma divisão entre eles e os praças rurais: “O exército camponês não está disposto a seguir um “cowboy de Saigon”; o oficial, por sua vez, geralmente procura evitar as dificuldades da vida rural e na selva”.17 Os oficiais estavam desconectados das aldeias que compunham a maior parte da população vietnamita. Contentavam-se, em grande parte, em permanecer em postos avançados separados da população. Não se vinculavam ao destino da população como o guarda no panóptico ou como os comunistas.

A abordagem comunista

Os comunistas perceberam que o poder em uma luta revolucionária vinha do povo. Era uma compreensão do poder baseada no poder disciplinar. Em 1956, o “Juramento da Revolução no Sul” do Comitê Central declarou: “Devemos reconhecer que tudo em um país é realizado pelo povo”.18 A violência apoiou a luta política no desenvolvimento de forças entre as classes da sociedade. O partido concentrou-se especialmente na compreensão das motivações dos camponeses.

Para grande parte da população mobilizada para lutar pelos vietcongues, o nacionalismo não foi o principal fator de motivação. As questões locais foram o fator motivador. Em entrevistas, o núcleo comunista enfatizou que raramente era suficiente recrutar combatentes com a declaração de que era necessário “libertar o país dos imperialistas estadunidenses”.19 Era fundamental explicar como o indivíduo seria beneficiado com a obtenção de terras (uma questão vital para os camponeses, uma vez que 2% dos proprietários feudais possuíam títulos para 45% das terras dedicadas ao plantio de arroz), oportunidades educacionais e cargos de poder na comunidade local.20

Maj Robert G. Rose, Exército dos EUA

Os comunistas criaram um aparato administrativo centrado na aldeia. Como um membro do núcleo comunista reconheceu: “Se o nível da aldeia for fraco, então eu garanto que o governo central não conseguirá fazer nada, por mais forte que seja”.21 A maioria das decisões era tomada pelo comitê da aldeia. Recrutava líderes dentre os camponeses pobres e lhes proporcionava oportunidades para subir na hierarquia.

Os comunistas cuidavam para que suas forças de combate fossem “uma extensão lógica da família e da aldeia”.22 Um general comunista lembrou: “Ainda valorizávamos aquela ideia de que o serviço no exército não deveria destruir a vida em família e na aldeia. Afinal de contas, era disso que se tratava a guerra”.23 Os vietcongues recrutavam localmente, e raramente os guerrilheiros lutavam fora de seu distrito. Eles conheciam o terreno, a população e uns aos outros. Ao contrário do ARVN, eram muito coesos e dedicados à causa.

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Os comunistas haviam enfatizado a subversão não violenta, mas, em 1959, o Comitê Central iniciou a violência coordenada com a estratégia de separar Saigon do governo local.

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Inicialmente, os comunistas haviam enfatizado a subversão não violenta, mas, em 1959, o Comitê Central iniciou a violência coordenada com a estratégia de separar Saigon do governo local. Teve início uma campanha de assassinatos que tirou a vida de 4 mil funcionários entre abril de 1960 a abril de 1961.24 Os sobreviventes fugiram para postos avançados protegidos, e o governo perdeu sua conexão com a população rural. Mostrando o colapso do alcance administrativo do governo, sua arrecadação fiscal caiu de 81,6% do território em 1959 para 20,9% em 1964.25 Os vietcongues conseguiam se mover e agir impunemente. As forças do governo entraram em colapso. A deterioração da situação levou a uma escalada do envolvimento dos EUA.

Intervenção dos EUA no Vietnã

Sob Robert McNamara, o Departamento de Defesa adotou uma política de pressão gradual fundamentada na gestão científica e na teoria de negociação de Thomas Schelling. McNamara e sua equipe acreditavam na gestão eficiente da guerra como se fosse uma fábrica de automóveis da Ford. Era uma visão da guerra baseada no poder soberano que levou à centralização e a um entendimento de “imagem de espelho” do inimigo como um ator unificado. Acreditavam que, com pressão suficiente, o Comitê Central do Vietnã do Norte chegaria a um acordo negociado.26 Ansiavam por dados que respaldassem as decisões tomadas de forma centralizada e medissem o progresso. Essa teoria de gestão permitiu que os líderes militares recorressem às operações convencionais nas quais se sentiam confortáveis.

Os comandantes militares estadunidenses desconsideraram o aparato revolucionário de baixo para cima do inimigo e concentraram-se nas unidades de forças principais. Esses comandantes buscavam combates em posição fixa e conduziam operações de limpeza em larga escala para tentar trazer o inimigo para a batalha. Em sua mentalidade de poder soberano, as Forças Armadas estadunidenses acreditavam que essas unidades e o apoio do Vietnã do Norte eram as capacidades críticas da guerra, em vez da hierarquia paralela que os comunistas tinham construído em todo o país. Essa mentalidade convencional também se aplicava ao assessoramento do ARVN. Os assessores dos EUA analisavam o ARVN através de uma lente convencional de operações e prontidão.

O apoio estadunidense teve um efeito cáustico sobre o ARVN. Em 1971, Brian Jenkins escreveu que a dependência que o ARVN tinha em relação aos armamentos estadunidenses “contribuiu fortemente para que o exército do Vietnã do Sul […] se distanciasse do povo. À medida que a dependência da tecnologia estrangeira substituía o apoio local, o exército tornou-se indiferente ao povo […] A indiferença é retribuída”.27

O ARVN se distanciou mais da população ao reproduzir a abordagem dos EUA. A preocupação dos EUA com a segurança tática significava que as forças estadunidenses se isolavam em postos avançados, separadas do povo. O Cel James Herbert, um assessor, observou que achou difícil “exigir que os comandantes do ARVN [...] enviassem suas forças para proteger as pessoas em vez de ficarem dentro de grandes fortes de barro para se protegerem [...] é muito difícil conseguir que os vietnamitas façam o que os EUA não fazem”.28 O foco na segurança tática levou à insegurança estratégica.

Houve tentativas de se reconectar com as aldeias e desenraizar o aparato político comunista, mas os EUA investiram pouco nessas iniciativas, que foram recebidas com desconfiança por Saigon. O Programa Phoenix tentou erradicar o aparato político do inimigo, mas não recebeu apoio adequado. O Programa de Apoio às Operações Civis e ao Desenvolvimento Revolucionário uniu líderes civis e militares até o nível distrital e incorporou forças regionais e populares baseadas nas aldeias.29 No entanto, Saigon não confiava nessas milícias e, muitas vezes, recusou-se a lhes dar armas.30 Saigon não tinha interesse em afrouxar seu controle centralizado.

Com o apoio estadunidense, Saigon reforçou um ponto cego conceitual para o problema da guerra revolucionária e nunca desenvolveu o apreço dos comunistas pelo poder disciplinar. Nos últimos estágios da guerra, o correspondente Robert Shaplen relatou: “Ainda não temos nenhuma filosofia de governo, nenhum senso fundamental da direção em que estamos indo e, sobretudo, nenhum sistema de organização política, que deve inevitavelmente começar de baixo”.31 Com vultosa ajuda estadunidense, Saigon conseguiu manter um sistema corrupto e falido. Quando os EUA retiraram a ajuda, as contradições da sociedade se tornaram completamente aparentes, e o Estado desmoronou. Mesmo depois de tanto investimento estadunidense, a maioria dos soldados do ARVN, sem nenhuma conexão com o governo, simplesmente desapareceu.

O governo centralizado do Afeganistão

Embora o Afeganistão, assim como o Vietnã, tivesse uma tradição de governo local e carecesse de uma cultura política nacional, a comunidade internacional apoiou a formação de um governo enormemente centralizado. Era um governo baseado no poder soberano. Os doadores, liderados pelos EUA, viam um governo centralizado como o meio mais eficiente para canalizar ajuda, modernizar o Afeganistão e proporcionar estabilidade.32

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Em 2019, demonstraram sua falta de confiança no processo eleitoral quando o Presidente Ashraf Ghani venceu com apenas 923.592 votos em uma população de mais de 30 milhões de habitantes.

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De acordo com a Constituição afegã de 2004, o presidente pôde ignorar, em grande parte, o Parlamento e nomeou governadores provinciais e distritais. Embora tenham sido criados pela Constituição, os conselhos eleitos provinciais e distritais eram meros comitês consultivos sem autoridade. Os ministérios em Cabul nomearam chefes distritais de polícia, educação, etc., criando um sistema disfuncional e compartimentado no qual os funcionários locais não prestavam contas à população nem à autoridade unificada de um governador.

As eleições nacionais foram a única oportunidade para que o povo do Afeganistão tivesse voz, mas não resultaram em um governo que representasse a vontade popular. O povo afegão não tinha um senso desenvolvido de comunidade nacional que permitisse um discurso político significativo durante as eleições. O Presidente Hamid Karzai sufocou deliberadamente o desenvolvimento do discurso público de partidos políticos da oposição, o que poderia ter gerado plataformas nacionais e aparatos políticos participativos.

Maj Robert G. Rose, Exército dos EUA

O povo afegão perdeu sua fé na democracia após duas décadas de eleições cada vez mais fraudulentas e contestadas. Em 2019, demonstraram sua falta de confiança no processo eleitoral quando o Presidente Ashraf Ghani venceu com apenas 923.592 votos em uma população de mais de 30 milhões de habitantes.33 Cada uma das três últimas eleições presidenciais produziu resultados contestados devido ao sistema de “o vencedor leva tudo” do país. Com todo o poder concentrado na presidência, os perdedores e seus seguidores não tinham acesso a meios alternativos de poder e à receita de assistência. Não puderam receber como prêmio de consolação a vitória nas eleições provinciais ou distritais. Imagine como a política estadunidense seria conturbada se Donald Trump nomeasse o prefeito de São Francisco ou se Joe Biden escolhesse o governador do Texas.

Esse sistema afastou os que não tinham vínculos com os governos de Karzai ou Ghani. Os Acordos de Bonn também impediram o Talibã de ingressar no governo. Um sistema descentralizado de governo que permitisse partidos políticos poderia ter visto o surgimento de um partido político pacífico do Talibã, satisfeito em ganhar cargos de governador nas províncias pashtuns. O sistema político impedia essa possibilidade. Para os excluídos, a única opção era o conflito.

A abordagem do Talibã

A corrupção do governo e sua falta de conexão com a população rural proporcionaram uma oportunidade para o ressurgimento do Talibã. A pressão sobre o movimento disciplinou o Talibã, transformando-o em uma insurgência eficaz que reconheceu que, para ter sucesso, deveria basear seu poder na população. No auge da onda de contrainsurgência em 2011, o Talibã estava aprendendo com seus erros e havia criado um aparato administrativo paralelo. Os combatentes do Talibã creditaram ao mulá Akhtar Mohammad Mansour o fato de ter “mudado totalmente nossa maneira de pensar: sobre governo, sobre paz, sobre tudo”.34

Mansour transformou a insurgência em um Estado-sombra, reestruturou suas instituições para criar uma administração paralela, criou uma comissão para investigar as baixas civis causadas pelo Talibã e trouxe líderes tadjiques e uzbeques para ampliar sua base. Estabeleceu uma hierarquia descentralizada que se estendia até as aldeias e comandantes de campanha. Essa autonomia permitiu que o Talibã se ampliasse para acomodar diferentes pontos de vista e manter diversos grupos étnicos e tribais dentro do movimento com o mínimo de dissidência aberta.

Com essa estrutura descentralizada, o Talibã poderia usar sua iniciativa para tirar proveito dos fracassos do governo. Um líder talibã explicou como a falta de um sistema judicial eficaz nas aldeias abriu espaço para a administração do Talibã: “O governo era muito corrupto, então justiça era a primeira necessidade. Até mesmo as pessoas em áreas controladas pelo governo estavam nos procurando. Essas pessoas não queriam o Talibã, veja bem, mas queriam justiça. Começamos lá porque era a necessidade naquele momento.”35 Os governadores-sombra distritais do Talibã administravam tribunais para as disputas entre os aldeões, o que proporcionava uma justiça ágil e baseada nas normas da comunidade local.

Gradualmente, o Talibã impôs suas regras, recrutou membros da população para funções civis locais e cooptou instituições financiadas pelo governo. Reconheceu que não precisava atacar as estruturas estatais quando podia capturá-las e usá-las em benefício de seu próprio controle administrativo. Usando a violência direcionada para isolar o aparato de segurança do governo nos centros distritais, o Talibã subverteu os escalões inferiores do Estado.

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Os governadores-sombra distritais do Talibã administravam tribunais para as disputas entre os aldeões, o que proporcionava uma justiça ágil e baseada nas normas da comunidade local.

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Em 2018, o Talibã já havia estabelecido um aparato de poder disciplinar em grande parte do interior. Conforme apontado por um estudo, “a maioria dos funcionários de saúde ou educação do governo provincial ou distrital entrevistados afirmou estar em contato direto com seus homólogos talibãs, e alguns até assinaram termos de compromisso formais com o Talibã, delineando as condições de sua cooperação”.36 O Talibã monitorava as clínicas, garantia que os funcionários cumprissem suas horas de trabalho e inspecionava os suprimentos médicos. Nas escolas do governo, cronicamente mal administradas, o Talibã avaliava os professores do governo, observava o cumprimento do currículo e fiscalizava a frequência. Regulamentava os serviços públicos e as comunicações, efetuando cobranças das contas da empresa estatal de energia elétrica e controlando cerca de 1/4 da cobertura de telefonia celular do país.37 Seu sistema tributário se estendia à vida de quase toda a população rural através do tradicional Zakat islâmico, que cobrava um percentual das lavouras na temporada de colheita. O Talibã geria este sistema administrativo recrutando localmente para assegurar a participação das bases e a aceitação de suas decisões.

Poder disciplinar em Zhari

Por um período durante a escalada de 2010 a 2012, os EUA tentaram empregar uma estratégia de contrainsurgência que reconhecia a importância das estruturas de poder locais. Nesse período, participei de operações no distrito de Zhari, em Kandahar, que mostraram como os contrainsurgentes poderiam usar o poder disciplinar.

Zhari é um deserto que foi transformado em terra verdejante pelos canais do rio Arghandab. A população estava distribuída entre complexos em grupos de aldeias. Seu cultivo principal eram uvas que cresciam em “fileiras” centenárias, trincheiras paralelas de 2 a 3 metros de profundidade nas quais as videiras eram cultivadas. O Talibã tornou esse terreno restrito praticamente intransitável ao semear as terras agrícolas com inúmeros dispositivos explosivos improvisados (DEI). Esses DEI isolavam a população dos contrainsurgentes.

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Era essencial recrutá-los e avaliá-los por meio de shuras (conselhos consultivos) nas aldeias, usando a tradicional democracia afegã de base, que outorgava autoridade significativa à liderança local, embora os shuras não tivessem legitimidade no governo.

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Zhari foi o local de nascimento do Talibã e, após seu ressurgimento, o distrito foi separado do controle do governo. Os canadenses voltaram a Zhari em 2006 e recuperaram o controle da Rodovia 1. Em seguida, a 2a Brigada de Combate da 101a Divisão Aeroterrestre expandiu o controle para o sul, em direção ao rio. Servi no 5o Batalhão do 20o Regimento de Infantaria, subordinado à 3a Brigada de Combate da 10a Divisão de Montanha, em 2011 e 2012.

Nossa brigada tinha uma vantagem exclusiva. Éramos a única unidade convencional autorizada a recrutar a Polícia Local Afegã (Afghan Local Police — ALP). Criada em 2010, a ALP foi concebida para proteger suas próprias aldeias e era como o conceito afegão de Arbaki (grupo de milícia). Em todos os outros lugares, as Forças Especiais conduziam o programa. Para alguns, inclusive Karzai, a ALP era uma milícia polêmica, que poderia levar o Afeganistão de volta ao regime dos senhores de guerra (warlordism). A suspeita refletia a desconfiança em relação ao empoderamento descentralizado dos afegãos rurais no cerne dos problemas de Cabul. A ALP era exatamente a força local necessária para afastar o Talibã das aldeias. Era essencial recrutá-los e avaliá-los por meio de shuras (conselhos consultivos) nas aldeias, usando a tradicional democracia afegã de base, que outorgava autoridade significativa à liderança local, embora os shuras não tivessem legitimidade no governo.

Durante a operação decisiva do nosso batalhão na aldeia de Siah Choy, controlada pelo Talibã, planejamos a operação para capacitar o governo local e vinculá-lo ao governo distrital. Descartamos a segurança operacional e trouxemos os líderes locais, o chefe de polícia do distrito e a liderança do Exército Nacional Afegão (Afghan National Army — ANA) para planejar a operação e escolher um local ideal para a ALP com uma força parceira no centro de Siah Choy.

Após destruir dezenas de DEI e enfrentar emboscadas esporádicas do Talibã, ingressamos na cidade. Ao entrar na aldeia, caminhei lado a lado com seu líder, Haji Ghulam. Depois de liberar a aldeia, organizamos um shura e reunimos os anciãos para que elegessem a liderança.

Capacitamos o shura a selecionar membros da ALP para proteger sua aldeia e estabelecer a participação em um sistema de poder disciplinar para impedir o retorno do Talibã. Um pelotão dos EUA e outro do ANA colaboraram no posto da ALP enquanto recebiam treinamento e adquiriam confiança. Imediatamente após a missão, o comandante da companhia estadunidense retirou o pelotão para um grande posto avançado fora de Siah Choy, que não podia vigiar a população. Não estava disposto a agir como o guarda no panóptico e vincular seu destino aos aldeões.

Devido à intimidação do Talibã, a ALP se retirou e tivemos de realizar outra liberação da aldeia e restabelecer o posto da ALP no centro do povoado. Nesta segunda vez, mantivemos o posto. Com confiança cada vez maior, a ALP patrulhou sua aldeia e fez parceria com o ANA. Com seu conhecimento de longa data sobre Siah Choy, a ALP erradicou o Talibã e seu governo-sombra.

Alguns meses depois, os EUA começaram a retirar as tropas do Afeganistão e, no final de 2012, reduziram as forças em Zhari. O Talibã tentou voltar, mas os líderes locais fortalecidos tiveram um “despertar” que manteve o local de origem do movimento Talibã praticamente livre de seu controle. Quando voltei ao Afeganistão em 2018, o Grupo de Avaliação do Afeganistão ainda o classificava como controlado pelo governo.

Zhari teve sucesso apesar da política do governo. Os shuras locais que aprovaram a ALP não tinham nenhuma autoridade ou orçamento do governo central. A ALP funcionou devido ao nosso foco na criação de uma forma de governo e segurança — não apoiada por Cabul — baseada na aldeia. Em outros lugares, como não havia controle local formalizado, o programa da ALP foi apreendido pelos senhores de guerra ou se corrompeu.38 Se tivesse sido apoiado por um aparato governamental descentralizado, a ALP teria representado uma forma ideal de poder disciplinar para isolar o Talibã da população. Era um conceito de poder melhor do que todos os outros testados ao longo de 20 anos.

Estratégias alternativas fracassadas no Afeganistão

Depois de 2012, as forças estrangeiras começaram a fazer a transição para uma função de assessoria. A assessoria reforçou a centralização das forças de segurança afegãs. As forças internacionais deixaram de assessorar pequenas unidades e passaram a interagir apenas com batalhões, brigadas e corpos de exército. Nos últimos anos da guerra, abrigadas em bases avançadas de operações, poucos militares estrangeiros chegaram a conhecer algum morador de aldeia afegão. Limitados a interações em escalões superiores, os assessores desenvolveram, naturalmente, um foco míope em questões de nível mais elevado. Desenvolveram capacidades para operações de liberação no escalão batalhão e acima e não promoveram o aparato de segurança descentralizado de que o país precisava.

Mesmo que abordassem as Forças de Segurança Nacional do Afeganistão com a estratégia correta, os assessores não tinham autoridade para impor a reforma das forças afegãs. A assessoria sofre com o problema do principal-agente, em que os interesses do principal (o assessor) e do agente (a nação anfitriã) não estão alinhados. Sem nenhuma autoridade sobre as forças do país anfitrião, os assessores não podiam forçá-las a mudar sua abordagem para outra que estivesse alinhada com a população. As forças afegãs não eram responsáveis perante os assessores nem perante a população. No sistema afegão centralizado, os oficiais estavam interessados em demonstrar lealdade e oferecer espólios aos seus superiores.

Embora a assessoria tenha fracassado em grande parte, é possível afirmar que as Forças de Operações Especiais Afegãs (ANSOF) foram bem-sucedidas. Embora competente, as ANSOF representavam as armadilhas da centralização. As ANSOF retiraram indivíduos talentosos do restante dos serviços de segurança afegãos. O Marechal de Campo William Slim alertou sobre os efeitos cáusticos da dependência das forças de operações especiais, alegando que “reduzem a qualidade do restante do Exército [...] Os exércitos não vencem guerras por meio de alguns grupos de supersoldados, mas pela qualidade média de suas unidades-padrão”.39

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Mesmo que abordassem as Forças de Segurança Nacional do Afeganistão com a estratégia correta, os assessores não tinham autoridade para impor a reforma das forças afegãs.

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Em vez de desenvolver um aparato de segurança com base local, os melhores membros dos serviços de segurança estavam conduzindo incursões. Como disse Galula, “isso não quer dizer que não haja lugar na combate de contrainsurgência para pequenas operações do tipo comando. No entanto, não podem representar a principal forma de combate do contrainsurgente”.40 Galula acrescentou que “as unidades estáticas são, obviamente, as que melhor conhecem a situação local [...] Portanto, quando uma unidade móvel é enviada para operar temporariamente em uma área, deve ser colocada sob o comando territorial”.41 Durante a guerra, ignoramos o conselho de Galula. As operações especiais estavam sob sua própria cadeia de comando, que ignorava as considerações locais das unidades convencionais, donas dos espaços de combate. No fim da guerra, a estratégia estadunidense concentrou seu principais esforços em incursões, em vez de operações locais.

As incursões se encaixavam com os ataques aéreos, que eram a representação máxima do poder soberano. Os ataques aéreos expõem a fraqueza de um contrainsurgente que está desconectado da população e depende de uma solução tecnológica. Provocam o desprezo da população. Embora o processamento de alvos tenha sido extremamente seletivo durante a maior parte da guerra, a concentração em alvos a 20 mil pés de altitude não foi capaz de evitar distorções como o ataque estadunidense que encerrou a guerra matando um trabalhador humanitário e sua família.42

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Com uma fração do efetivo dos EUA, um orçamento minúsculo e em defesa de um império indefensável, realizou três campanhas eficazes de contrainsurgência simultaneamente em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

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Assim como na abordagem de McNamara, havia a esperança de que essas incursões e ataques aéreos levassem o Talibã a um acordo negociado. As negociações eram uma miragem que representava outra crença equivocada no poder soberano. A ideia era que, com pressão suficiente sobre a alta liderança do Talibã, os EUA poderiam coagi-los a um acordo negociado. A abordagem não reconhecia o aparato descentralizado do Talibã e não aproveitava as fragmentações no Talibã para separar grupos. Os negociadores queriam um Talibã unitário que aceitasse a paz de forma centralizada. O Talibã, assim como o Vietnã do Norte anteriormente, entendeu que a impulsão estava do seu lado e só estava interessado em buscar vantagens de curto prazo nas negociações. Mesmo que a impulsão tivesse mudado, o Estado afegão no qual “o vencedor leva tudo” não permitia uma participação significativa do Talibã na política. Negociações bem-sucedidas, como as ocorridas com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) ou os maoístas no Nepal, funcionam ao permitir a participação dos insurgentes no governo e nas políticas locais.43

Durante o período de negociações, perguntei à J-2 (Diretoria de Inteligência), ao Grupo de Avaliação Afegão e ao Departamento de Estado se conheciam os índices de arrecadação de impostos distritais do governo. Nenhum deles coletava esses dados. Esse foi um dos indicadores básicos que Fall usou para mostrar o colapso do controle do governo na Indochina. Nossa incapacidade para reconhecer a extensão do controle administrativo do Talibã não teria sido tão embaraçosa se já não tivesse ocorrido no Vietnã.

Não lobotomize as lições da contrainsurgência

O Exército dos EUA perdeu suas duas guerras mais longas e parece não querer aprender nada com isso. Assim como após a Guerra do Vietnã, o Exército busca conforto na aritmética simples das operações de combate em larga escala. A contrainsurgência agora é a expressão mais ampla de “operações de estabilização”, algo abordado superficialmente em áreas de consolidação durante o treinamento. As lições de nossas experiências recentes são apagadas rapidamente. Os novos oficiais não aprendem sobre contrainsurgência. Ela é, em grande parte, ignorada no Command and General Staff College. Ao seguir esse caminho, o Exército está abdicando de sua responsabilidade de dar ao nosso governo opções para lidar com a forma dominante de conflito desde a Segunda Guerra Mundial.

Os EUA não têm outra instituição capaz de conduzir operações de contrainsurgência. Não podemos depender do Departamento de Estado para compreender completamente a política de um país. São muito poucos os funcionários do serviço de relações exteriores, e estão centralizados nas capitais, enviando mensagens para o Departamento de Estado. O Exército é a única organização com o efetivo necessário para ficar em nível local e sentir o pulso da população.

Há outro caminho. Na década de 1950, o Exército português dedicou-se a compreender a contrainsurgência. Estudou as experiências francesa e britânica e desenvolveu uma doutrina que inculcou em seus escalões mais baixos. Com uma fração do efetivo dos EUA, um orçamento minúsculo e em defesa de um império indefensável, realizou três campanhas eficazes de contrainsurgência simultaneamente em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.44

Não há segredo para o sucesso na contrainsurgência. Na década de 1890, o comandante da campanha de contrainsurgência da França em Madagascar, Gen Joseph Gallieni, reconheceu que a solução consistia em “combinar a ação política com a militar” e “estabelecer um contato próximo com as populações [...] para que criem vínculos com as novas instituições, por meio da persuasão”.45 Ele compreendia a importância da política descentralizada em uma insurgência. Gallieni demonstrou que os oficiais podem se destacar tanto na contrainsurgência quanto na guerra convencional. Na Primeira Guerra Mundial, ele desempenhou um papel fundamental e ajudou a salvar Paris na Batalha do Marne.

A política é a continuação da guerra por outros meios

Fall se preocupou com o fato de que o Gen Vo Nguyn Giáp, do Vietnã do Norte, “poderia muito bem estar entre a nova geração de generais de guerra revolucionários para os quais o Ocidente pode ter dificuldade em produzir alguém à altura no futuro próximo [...] é quase impossível, em nosso sistema militar, produzir homens com habilidades táticas brilhantes e treinamento político abrangente”.46 O Vietnã e o Afeganistão mostraram como os líderes estadunidenses não conseguiram entender a relação entre política e poder em uma insurgência. Se aprendermos as lições dessas guerras, poderemos produzir oficiais como Giáp e Gallieni.

Para entender a contrainsurgência, os oficiais devem compreender a política de uma sociedade. Devem aprender como o poder interage com a população no âmbito local. O poder disciplinar de Foucault oferece uma lente para conceituar como o poder flui através dos aparatos do governo para a população. Durante uma insurgência, os insurgentes exploraram uma fresta política e estão superando o aparato administrativo do governo. Os contrainsurgentes devem identificar mecanismos para lidar com as falhas administrativas, mas também reconhecer quando sua presença está isolando uma nação anfitriã da pressão para que execute reformas. A compreensão do contexto político proporciona os meios para mobilizar a população e colocar os insurgentes em uma situação difícil. O Exército desconsiderou essa lição do Vietnã. Não podemos deixar de aprender com nossa derrota no Afeganistão.


Referências

 

  1. Bernard Fall, Last Reflections on a War (New York: Doubleday, 1967), p. 220.
  2. Ibid., p. 210.
  3. Bernard Fall, “The Theory and Practice of Insurgency and Counterinsurgency”, Naval War College Review 18, no. 3 (1965): p. 25, acesso em 22 ago. 2022, https://digital-commons.usnwc.edu/nwc-review/vol18/iss3/4/.
  4. Jean-Jacques Rousseau, Social Contract (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), p. 43.
  5. Michel Foucault, Society Must be Defended (London: Penguin Books, 2004), p. 44.
  6. Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison (London: Penguin Books, 1977), p. 201.
  7. David Galula, Counterinsurgency Warfare: Theory and Practice (Westport, CT: Praeger, 1964), p. 80.
  8. Foucault, Society Must be Defended, p. 32.
  9. Michael Nagle, “Sir Robert Peel’s Nine Principles of Policing”, New York Times (site), 16 April 2014, acesso em 22 ago. 2022, https://www.nytimes.com/2014/04/16/nyregion/sir-robert-peels-nine-principles-of-policing.html.
  10. Jacques Hogard, “Guerre Révolutionnaire et Pacification”, Revue Militaire d’Information (January 1957): p. 8.
  11. Galula, Counterinsurgency Warfare, p. 95.
  12. Fall, Last Reflections on a War, p. 45.
  13. Jeffrey Race, War Comes to Long An: Revolutionary Conflict in a Vietnamese Province (Berkeley: University of California Press, 2010), p. 9.
  14. Fall, Last Reflections on a War, p. 199.
  15. Race, War Comes to Long An, p. 19.
  16. Ibid., p. 164.
  17. Allan E. Goodman, An Institutional Profile of the South Vietnamese Officer Corps (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 1970), p. 27.
  18. Race, War Comes to Long An, p. 78.
  19. Ibid., p. 179-80.
  20. Fall, Last Reflections on a War, p. 55.
  21. Race, War Comes to Long An, p. 42.
  22. Robert K. Brigham, ARVN: Life and Death in the South Vietnamese Army (Lawrence: University Press of Kansas, 2006), p. 3.
  23. Ibid.
  24. Fall, Last Reflections on a War, p. 219.
  25. Race, War Comes to Long An, p. 116.
  26. Mai Elliott, Rand in Southeast Asia: A History of the Vietnam War Era (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2010), p. 54-55, acesso em 7 set. 2022, https://www.rand.org/pubs/corporate_pubs/CP564.html.
  27. Brian M. Jenkins, A People’s Army for South Vietnam: A Vietnamese Solution (Santa Monica, CA: RAND Corporation, 1971), p. 9, acesso em 7 set. 2022, https://www.rand.org/pubs/reports/R0897.html.
  28. Race, War Comes to Long An, p. 232.
  29. Richard A. Hunt, Pacification: The American Struggle for Vietnam’s Hearts and Minds (Oxford: Westview Press, 1995), p. 88.
  30. Race, War Comes to Long An, p. 242.
  31. Gregory A. Daddis, No Sure Victory: Measuring U.S. Army Effectiveness and Progress in the Vietnam War (Oxford: Oxford University Press, 2011), p. 173.
  32. Alex Thier, The Nature of the Afghan State: Centralization vs. Decentralization, Afghan Peace Process Issues Paper (Washington, DC: U.S. Institute of Peace, November 2020), acesso em 7 set. 2022, https://www.usip.org/sites/default/files/Afghanistan-Peace-Process_Nature-of-the-Afghan-State_Centralization-vs-Decentralization.pdf.
  33. Jennifer Brick Murtazashvili e Mohammad Qadam Shah, “Political Reform Urgently Needed in Afghanistan”, The Diplomat (site), 22 February 2020, acesso em 22 ago. 2022, https://thediplomat.com/2020/02/political-reform-urgently-needed-in-afghanistan/.
  34. Ashley Jackson, “The Taliban’s Fight for Hearts and Minds”, Foreign Policy (site), 12 September 2018, acesso em 22 ago. 2022, https://foreignpolicy.com/2018/09/12/the-talibans-fight-for-hearts-and-minds-aghanistan/.
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  36. Jackson, “The Taliban’s Fight for Hearts and Minds”.
  37. Jackson, Life Under the Taliban Shadow Government.
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  39. William Slim, Defeat into Victory: Battling Japan in Burma and India, 1942–1945 (New York: Cooper Square Press, 2000), p. 546.
  40. Galula, Counterinsurgency Warfare, p. 51.
  41. Ibid., p. 65.
  42. Azmat Khan, “Hidden Pentagon Records Reveal Pattern of Failure in Deadly Airstrikes”, New York Times (site), 18 December 2021, acesso em 22 ago. 2022, https://www.nytimes.com/interactive/2021/12/18/us/airstrikes-pentagon-records-civilian-deaths.html.
  43. Thier, “The Nature of the Afghan State”; Budhi Karki and Rohan Edrisinha, eds., Post Peace Agreement Constitution Making in Nepal: The Federalism Debate in Nepal (Kathmandu, Nepal: United Nations Development Program, 2014).
  44. John P. Cann, Counterinsurgency in Africa: The Portuguese Way of War 1961–1974 (Amherst, UK: Helion, 13 September 2012).
  45. Thomas Rid, “The Nineteenth Century Origins of Counterinsurgency Doctrine”, The Journal of Strategic Studies 33, no. 5 (2010): p. 727-58, https://doi.org/10.1080/01402390.2010.498259.
  46. Vo Nguyen Giáp, People’s War and People’s Army: The Viet Cong Insurrection Manual for Undeveloped Countries (New York: Bantam Books, 1968).

 

O Maj Robert G. Rose, Exército dos EUA, atua no Grupo de Operações do Centro Nacional de Treinamento. Anteriormente, serviu como oficial executivo e de operações do 2o Batalhão do 502o Regimento de Infantaria, como chefe de planejamento financeiro de combate de ameaças para a Operação Freedom’s Sentinel e como observador-controlador no Centro de Adestramento e Aprestamento Conjunto. Comandou companhias no 1o Batalhão do 509o Regimento de Infantaria e 3o Batalhão do 353o Regimento de Infantaria. Serviu em Zhari, Kandahar, com o 5o Batalhão do 20o Regimento de Infantaria. Tem mestrado em Política Pública pela Harvard University, mestrado pela Cambridge University e bacharelado pela Academia Militar dos EUA.

 

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Janeiro-Junho 2023